Editorial Folha de S.Paulo
Estiagem, a mais intensa desde 1950, já dava sinais anteriores de agravamento; mudança climática afeta economia e saúde.
O Brasil enfrenta a pior seca desde o longínquo 1950, início da série histórica do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais. A estiagem não surgiu do nada. Ela dá sinais de agravamento há muitos anos.
Quase foi necessário fazer racionamento de água em diversas regiões em 2014, 2017 e 2021. Em 2023, cidades da Amazônia ficaram encobertas por fumaça de queimadas, e o Rio Negro atingiu o menor nível em 120 anos.
Diretamente imbricada com com o meio ambiente, a agropecuária por óbvio é afetada. Segundo estimativas do Ipea, apresentados em coluna do economista Bráulio Borges na Folha, a produtividade do setor cresceu 4% ao ano entre 1970 e 2011, mas só 1,5% ao ano de 2012 a 2021.
De acordo com o IBGE, no segundo trimestre de 2024, o Produto Interno Bruto da agropecuária recuou 2,3% ante os três meses anteriores. Em relação ao período correspondente do ano passado, a queda foi de 2,9%.
Decerto se deve considerar que em 2023 colheu-se uma safra de grãos excepcional de 315,4 milhões de toneladas, que impulsionou uma alta do PIB agrícola de 15,1% ante 2022. Por isso uma queda neste ano já era esperada.
Além da base de comparação atípica, a Confederação da Agricultura e Pecuária dá ênfase à sazonalidade típica do setor e ao fenômeno climático El Niño como motivos para a queda. Há mais.
A própria intensidade do El Niño e eventos extremos como as enchentes no Rio Grande do Sul se relacionam aos impactos do aquecimento global —para o qual o país e particularmente o agronegócio contribuem com o avanço do desmatamento, sobretudo na região amazônica.
Com a energia adicionada à atmosfera, há mais evaporação e formação de nuvens que despejam tempestades mais volumosas em períodos curtos.
O início da estação de chuvas também se desloca no calendário, prejudicando a semeadura. Para nada dizer das estiagens prolongadas, como a do presente, e dos ventos secos que propagam queimadas e incêndios florestais.
Como ao poder público e à sociedade em geral, cabe ao agronegócio reconhecer que uma transformação mais ampla do clima está em curso —em não poucos casos superando a propaganda anticientífica que grassa em seu ambiente político e ideológico.
A intensidade atípica do calor e das chuvas no verão deste 2023, por exemplo, já era prevista por pesquisadores brasileiros e organismos internacionais desde o começo do ano passado.
Mesmo assim, governo federal, estados e municípios não se mostraram capazes de enfrentar a contento os efeitos dessas mudanças, que incluíram até a explosão dos casos de dengue.
Com a estiagem, que não é de agora, são afetadas a oferta de alimentos, a produção de eletricidade, a saúde pública, a qualidade do ar, o poder aquisitivo da população. Nada há de abstrato nem de imprevisível nisso (Folha, 6/9/24)