Por André Roncaglia
Assimetrias comerciais e tecnológicas tornam o acordo um péssimo negócio para o Mercosul.
Nesta semana ocorreu nova rodada de negociações da área de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia (UE). As assimetrias comerciais e tecnológicas tornam o acordo um péssimo negócio para o Mercosul.
O acordo é uma afronta aos planos do presidente Lula de reindustrializar o país. Estudo do Global Development Center mostrou que a indústria do Mercosul sofrerá as maiores perdas —notadamente os setores automotivos e de máquinas e equipamentos.
As premissas do acordo refletem um paradigma geopolítico superado. As novas rivalidades tecnológicas entre os países isolaram a Europa em sua busca por protagonismo na transição verde. O acordo com o Mercosul oferece uma saída.
A preocupação ambiental aparece de forma simbólica e seletiva (degradação), reforçando assimetrias comerciais. Ao excluir as emissões de CO2 do conceito de “respeito ao meio ambiente”, a UE se protege de eventuais sanções às suas exportações industriais e submete os produtores do Mercosul a todo tipo de arbítrio, via barreiras não tarifárias.
No flanco agrícola, o aumento da competição com produtores europeus pode desestruturar cadeias da agricultura familiar brasileira, responsáveis por parte expressiva da oferta doméstica de alimentos. Em cenário conservador, estudo da LSE prevê uma avalanche de laticínios (+ 90%) e arroz (+ 47%) de origem europeia, por exemplo, ameaçando dezenas de milhares de empregos no Brasil e na Argentina.
O acordo liberaliza o nosso mercado de bens industriais em troca de pouco ganho ao agronegócio do Mercosul. No comércio administrado por meio de cotas, o Brasil já exporta mais do que elas garantem. A manutenção da tarifa europeia de 66% sobre nossas exportações de carne fresca impede o Brasil de acessar este nicho do mercado, em que os preços são 20% maiores do que os da carne congelada.
Outra desvantagem é a restrição à taxação de comércio eletrônico internacional; ou seja, consumidores podem ser taxados por consumir serviços digitais online, mas as empresas multinacionais, não (a Argentina deve perder US$ 186 milhões de arrecadação por ano). Esta medida enfraquece o combate à desigualdade global que Lula quer encampar na presidência do G20.
Fica pior: ao determinar que empresas estatais ajam exclusivamente de acordo com considerações comerciais em transações de bens ou serviços, o acordo limita a ação destas empresas como vetores de desenvolvimento (previstos pelo Novo PAC). Estatais como a Petrobras poderão ser questionadas em suas políticas de investimento, preço e exigência de conteúdo local, comprometendo a missão de reindustrializar o Brasil. O risco é tão evidente que a Argentina de Maurício Macri excluiu estatais de energia do país da incidência dessa regra.
Os europeus não são tolos. Devem flexibilizar em relação ao capítulo das compras governamentais, permitindo exceções e mecanismos de compensação. A boa vontade tem segunda intenção.
Aqui entra a neocolonização verde que Lula quer evitar. A UE busca assegurar o suprimento de minerais críticos à produção de baterias e outras tecnologias verdes, chegando ao ponto de proibir imposto de exportação, permitido pela OMC. O Brasil caminha para se tornar um dos maiores produtores mundiais destes insumos e a Argentina tem imensa reserva de lítio. Ao inibir o processamento desses minerais e zerar as tarifas a produtos industriais europeus, o acordo compromete a agenda do Presidente Lula de integração produtiva regional e seu Plano de Transformação Ecológica.
Há uma agenda positiva em transição energética e em cadeias críticas que pode beneficiar os dois blocos, mas o acordo não segue esta rota. Na prática, voltamos a nos especializar em commodities. A Europa joga parada e ganha de goleada.
“É cilada, Bino” (André Roncaglia é professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP; Folha, 6/10/23)