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Como a saúde mental do trabalhador do campo entrou na agenda do agronegócio

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Por Flávia Macedo

Saiba por que o equilíbrio psicológico e emocional não é apenas um desafio da sociedade urbana e como setores do agro administram essa questão.

Os únicos barulhos perceptíveis em um dia de trabalho de uma fazenda que planta cana-de-açúcar em Piracicaba, no interior de São Paulo, são os de tratores e de colheitadeiras. A cena é das mais comuns no campo. Mas, apesar do clima de aparente tranquilidade, essa sensação nem sempre está presente na lida de uma atividade a céu aberto como o agro. O gestor de operações Abner Aelcio Soares, que trabalha em uma das unidades da Raízen, um dos grupos de bioenergia mais importantes do país e controlado pela Cosan, procurou ajuda após um quadro de dificuldade no gerenciamento das emoções e que já afetava seu trabalho.

Foi no projeto Bem-Estar, oferecido pela empresa, que ele encontrou o apoio de que precisava. Para Soares, o primeiro passo foi entender a importância de cuidar da saúde mental. “Esse tema eu conheci na Raízen. Me cadastrei no grupo para receber informações e isso mudou a minha vida e a de meus familiares”, afirma. O gestor de operações explica que a melhora se deu em vários aspectos. “Hoje, também tenho uma alimentação melhor e consigo praticar esportes de forma regular”, completa.

Agronegócio emprega mais de 28 milhões de brasileiros

Não há nada mais equivocado, nos dias atuais, do que tratar a saúde mental como um tema exclusivamente da sociedade urbana. Esse assunto também é um desafio para o agronegócio. E não se trata apenas das áreas do agro em escritórios, dentro de fábricas ou nos serviços ligados ao setor. Saúde mental é um desafio também para os trabalhadores do campo, a céu aberto, uma atividade que pode ser altamente estressante por causa de máquinas sujeitas a quebras, insumos e sementes que podem atrasar, vaca que não emprenhou, falta de chuva, chuva em excesso, fruta que não vingou, ataque de pragas, doenças e mais um infinidade de percalços aos quais é quase, ou muito difícil, de serem evitados. Sem contar o estresse da colheita, da logística e do planejamento para o próximo ano, porque certamente ele virá.

De acordo com Carmem Miriam Rocha, psicóloga clínica e coordenadora do Serviço de Psicologia do Hospital Municipal Doutor Cármino Caricchio, em São Paulo, não existe diferença entre trabalhador rural ou urbano, pois todos estão sujeitos, em determinados processos da vida, a desenvolverem transtornos psicológicos e emocionais.

“No centro dessa discussão está cada um de nós, cidadãos urbanos ou rurais; moradores de diferentes regiões da cidade, estado ou país, porém, com uma necessidade em comum: os cuidados com a saúde, como um todo, inclusive a mental”, afirma Rocha. “Somos constituídos, enquanto humanos, por uma estrutura intrapsíquica, que é a subjetividade, e a extra-psíquica, que é o ambiente em que vivemos e tudo o que envolve o coletivo, o social, o econômico e o político. Por isso, ambas as estruturas nos influenciam e podem potencializar o adoecimento”, completa.

Segundo a médica, no imaginário coletivo, por muitas vezes a área rural e consequentemente os trabalhadores e moradores dessas regiões são tidos como atrasados em relação ao acesso às informações. “Mas essa visão vem se transformando aos poucos, felizmente”, afirma.

Tratar de saúde mental nas fazendas ainda é uma novidade no Brasil, mas não deveria ser. Os números em relação à ansiedade e à depressão dão uma ideia do tamanho do problema. Uma pesquisa de 2017, que é atualizada periodicamente pela OMS (Organização Mundial da Saúde), entidade ligada à ONU (Organização das Nações Unidas), mostra que o Brasil é o país mais ansioso do mundo e está em quinto lugar no diagnóstico de depressão, liderando na América Latina. A estimativa é que 18,6 milhões de brasileiros sofram com transtorno de ansiedade ou depressão.

Nos Estados Unidos, país que lidera o ranking da OMS em casos de depressão e está na terceira posição entre os países com a população mais ansiosa do mundo, saúde mental nas fazendas e como dar suporte à população rural estão na ordem do dia.

De acordo com o National Institute of Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental), órgão do governo norte-americano e maior organização de pesquisa especializada em saúde mental do mundo, 81% dos condados rurais do país necessitam de enfermeiros psiquiátricos e cerca de 65% dos condados precisam de médicos psiquiatras para tratamentos. Nos EUA, condados são as subdivisões regionais de um estado. Hoje, são 3.141 condados no país (média de 62 por estado).

A pandemia da Covid-19, em 2020-21, perturbou ainda mais as estruturas de atendimento nos EUA. Não por acaso, ganharam forças grupos como o Farm Crisis Center, da National Farmers Union, e plataformas como a Farm State of Mind, da American Farm Bureau Federation.

Escolher ajudar é sempre a melhor decisão

A Raízen escolheu dois caminhos para colocar a saúde mental na agenda de seus 45 mil funcionários. Um deles é por meio de uma plataforma online. Entre os serviços estão parcerias com academias, curso de inteligência emocional, atendimento psicológico e o PAE (Programa de Apoio ao Empregado), com consultorias que podem ajudar na tomada de decisões profissionais, pessoais, jurídicas e até na educação financeira.

Foi criado, também, um 0800 interno, com ligação gratuita e aberta a funcionários e seus familiares. É o sigilo dos atendimentos que dá segurança e conforto para quem precisa de um serviço que ainda é visto como supérfluo. Foi isso o que uma funcionária da Raízen falou à Forbes na condição de anonimato. Ela conta que, durante a pandemia, o ex-sogro faleceu e que a ajuda ao ex-marido, que não trabalha na Raízen, veio por meio do serviço chamado Psicólogo na Tela. Ele realizou quatro consultas em um período de quase dois meses. Foram as sessões de psicoterapia que o ajudaram a superar a perda familiar e a encarar o luto. “Uma das coisas importantes para ele, naquele momento, foi desabafar e colocar os sentimentos para fora, mas com um profissional”, diz a funcionária. “E foi muito bacana, por causa do sigilo e da facilidade de ser um serviço online”, completa.

De acordo com Ettore Martines, diretor de recursos humanos da Raízen, de agosto de 2022 a agosto deste ano, a procura pelos serviços do PAE cresceu 90%. Foram 1.300 pessoas, o equivalente a 1,3% do total de 100 mil beneficiários, entre funcionários e seus dependentes. Para o executivo, o olhar da população brasileira sobre saúde mental tem mudado após a pandemia – hoje há mais visibilidade e aceitação para implantar programas como esse no ambiente de trabalho.

Mariana Pedroza, coordenadora de bem-estar e benefícios da Raízen, afirma que a escolha por um site se deu com o objetivo de alcançar mais pessoas na indústria e também os trabalhadores no campo. Nas usinas, que agora a empresa chama de bioparques, 80% dos funcionários atuam no “chão de fábrica”, o que significa 36 mil pessoas na ponta da cadeia de produção. “Nossos colaboradores do campo não têm um e-mail corporativo, então enxergamos que o site seria a melhor ferramenta”, afirma Mariana. “A ideia é que ele possa procurar ajuda quando necessário, além de informações que são repassadas pelos gestores de cada grupo”, completa.

O segundo caminho escolhido pela Raízen foi utilizar uma ferramenta que já estava nas mãos dos funcionários, que é o rádio da comunicação interna, o trivial walk talk. Toda semana, os funcionários recebem mensagens sobre saúde física e mental. O projeto Minuto do Bem-Estar trava outras mensagens que venham a disputar o espaço no áudio e todos ouvem os recados. “A cada semana há uma mensagem personalizada e no final convidamos as pessoas a entrarem no site. Essa estratégia contribuiu para o aumento de acessos na plataforma”, diz Mariana.

Em setembro, quando o governo federal realizou campanhas para falar sobre saúde mental, o chamado “Setembro Amarelo”, Ettore conta que a Raízen não perdeu a oportunidade de abordar o tema. Em rodas de conversas, foram recebidas cerca de cinco mil pessoas. “Falamos sobre o gerenciamento das emoções e contamos com a presença de psicólogos que explicaram sobre as emoções primárias que são: tristeza, medo, alegria e raiva”, diz ele. “Tivemos, também, apresentações lúdicas teatrais”, completa.

Mente saudável, funcionário mais produtivo

Os caminhos escolhidos pela Raízen corroboram com o que mostram os dados da OMS: funcionários mentalmente saudáveis podem ser até 12% mais produtivos. Além disso, quando esses empregados têm um alto nível de satisfação com o ambiente de trabalho, podem ser até três vezes mais criativos no desempenho de suas funções.

Vinicius Kitahara, professor da Fundação Dom Cabral, onde coordena o curso de “Felicidade Corporativa” e que em 2015 fundou a consultoria Vinning, com sede em São Paulo, diz que o conceito de “felicidade corporativa” – em que estado emocional positivo é um objetivo se vivenciar experiências, percepções e sentimentos –, tem tomado a agenda das empresas. Kitahara relata que no último ano sua percepção é que triplicou o interesse das corporações em cuidar das emoções dos funcionários.

“Depois da pandemia, sim, as empresas entenderam a importância de cuidar da saúde e bem-estar dos seus colaboradores e esse cuidado precisa ser feito no horário do expediente”, afirma. O professor e consultor tem em sua agenda clientes como a Deloitte, Google, Suzano, Chilli Beans, Heineken, Adidas, Lojas Renner, Gympass, Centauro, Nike, Twitter, QuintoAndar, RaiaDrogasil, Anna Pegova, Insper, Kroton e B3, entre outras.

“As pautas se tornaram interesse das lideranças, inclusive do agronegócio”, afirma Kitahara. Além da Raízen, ele cita como outro exemplo a Suzano, a maior empresa de celulose do país, que criou o setor da “felicidade”. “Esse setor direciona ações para implantar a saúde mental entre todos os segmentos de trabalho. Ao trazer essa pauta, essas empresas se tornam pioneiras e podem atrair novos talentos, além de reter os talentos já contratados pela companhia”, completa (Forbes, 11/10/23)

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