Segundo economista José Alexandre Scheinkman, país deve estar pronto para próxima tragédia climática, após a do RS.
O Brasil pode se tornar um expoente na transição verde, mas é preciso disciplina para evitar distorções que privilegiem interesses de grupos específicos, avalia o pesquisador brasileiro José Alexandre Scheinkman, professor da Universidade Columbia, em Nova York.
“O país poderia se tornar um grande exportador de certos manufaturados produzidos com uma boa pegada de carbono, seria uma maneira de não só aumentar a renda da população mas de ter um impacto positivo importante na crise climática”, diz.
Scheinkman, que fez suas maiores contribuições acadêmicas em diferentes campos da economia —como finanças, interações sociais e teoria e métodos—, se tornou uma importante voz na defesa do ambiente.
Nascido no Rio de Janeiro e radicado nos Estados Unidos, o economista tem uma extensa carreira no exterior, sobretudo na Universidade de Chicago, e vê na tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul nos últimos dias lições para os governantes, que devem se preocupar em colocar a prevenção na agenda de prioridades.
O pesquisador tem se dedicado a estudar temas como os impactos econômicos do reflorestamento e colabora com o projeto Amazônia 2030. Ele veio ao Brasil para receber uma homenagem do Insper, nesta sexta-feira (17), em São Paulo.
Como o sr. vê a situação da economia brasileira atualmente?
Em geral, a situação melhorou muito, em relação ao último ano do governo de Jair Bolsonaro, mas a economia brasileira é algo complicado.
A questão do déficit fiscal, por exemplo, não está nas mãos apenas do Executivo, o Legislativo tem feito muito para atrapalhar a situação fiscal do Brasil, com medidas que já foram tomadas e outras que eles estão tentando aprovar e que podem causar grande prejuízo.
Agora, sobre os problemas de longo prazo do Brasil, a única coisa que foi feita nos últimos anos e que pode ajudar é a reforma tributária.
Ainda assim, precisamos esperar para saber como vão sair as alíquotas, se muitas das ineficiências de antigamente podem ser reintroduzidas simplesmente adotando alíquotas diferenciadas ou colocando na cesta básica produtos que não deveriam estar lá. Mas não há dúvida de que o Brasil tinha o sistema de impostos mais irracional do mundo sobre consumo e produção e agora estamos com a proposta de um imposto que seja padrão.
Algumas questões já são faladas há muito tempo, como a ineficiência do serviço público. Se olharmos a renda per capita do Brasil, a quantidade de impostos cobrados e o percentual de casas ligadas ao tratamento de esgoto, dá para ver que o serviço público no Brasil é, em geral, muito pior do que se esperaria pela quantidade de impostos que são arrecadados.
Outro problema é aumentar a taxa de poupança, e, de novo, o governo tem um papel ao menos inicial nisso. O setor privado também teria de aumentá-la, mas esse movimento é iniciado pelo governo.
Por onde o país pode começar a resolver esses problemas mais complexos?
O Brasil tem uma rede elétrica que é bastante verde, muito por causa das hidrelétricas. Somos um país que tem regiões, principalmente as que são relativamente mais pobres, em que há muito vento e sol, são lugares em que se pode captar e produzir energia com baixo impacto no aquecimento global e às vezes com impacto até positivo.
O momento é bastante positivo, mas é preciso ter a infraestrutura necessária para atrair fabricantes para as regiões com eletricidade verde, e isso é um papel que o governo tem de ter.
A China, na década de 1980, se deparou com uma oportunidade: tinha uma força de trabalho que, se não era a melhor do mundo, estava relativamente bem treinada e em grande quantidade.
O México exporta trabalhadores, mas está em uma condição especial e próxima dos Estados Unidos, a China, ao contrário, criou condições para que indústrias que usam essa força de trabalho se instalassem lá e se tornou exportadora desses bens.
O Brasil poderia se tornar um grande exportador de certos manufaturados produzidos com uma boa pegada de carbono, seria uma maneira não só de aumentar a renda da população mas de ter um impacto positivo importante na crise climática.
Mas, para fazer isso, primeiro é preciso fazer todo o resto, treinar as pessoas para que elas possam trabalhar nessas indústrias, desenvolver uma tecnologia local.
Não é impossível, outros países já fizeram algo assim, e o próprio Brasil desenvolveu tecnologia para a agricultura tropical, mas é preciso que seja feito mais rapidamente e em uma escala maior do que está sendo feito agora.
O Brasil pode ser um expoente da transição verde?
Pode ser uma referência, mas isso exige uma certa disciplina, e é preciso barrar as distorções que são criadas nesse processo.
Na privatização da Eletrobras, foram colocados diversos “jabutis” que subsidiam a produção de eletricidade a gás em lugares que não têm nem gás nem consumo para isso, em benefício das pessoas que vão fazer os dutos. E há um lobby forte no Congresso a favor do carvão.
O Brasil tem uma grande oportunidade de capturar carbono com o reflorestamento na amazônia, é uma maneira não apenas de se tornar um líder em termos de boa pegada de carbono mas, se for bem negociado, de receber transferências equivalentes à captura que o Brasil pode fazer para se financiar.
A captura de carbono na amazônia é muito mais barata que nos países ricos, o país pode se estabelecer como um participante muito ativo nessas discussões.
O Brasil, como praticamente todos os países do mundo, também vai precisar ter novos gastos gerados pela situação climática, e é preciso saber como esses gastos serão financiados.
Quais são as lições que a tragédia no Rio Grande do Sul pode deixar?
As lições são muito claras, vêm do investimento em infraestrutura sanitária e contra eventos climáticos, que foram praticamente zero. Os cientistas predizem há muito tempo algo assim, e não vai ser a última enchente no Sul do Brasil, temos de lidar com a crise atual, mas igualmente urgente é saber o que pode ser feito para minimizar os problemas no futuro.
Uma coisa que as mudanças climáticas estão fazendo é não apenas acelerar o aquecimento mas aumentar a volatilidade do clima —isso fica claro no número de eventos que tivemos no Brasil nos últimos anos, no Rio Grande do Sul, no litoral de São Paulo, no Rio de Janeiro.
Não adianta os gestores públicos falarem que não esperavam algo assim, o próximo vai ser ainda maior e é preciso estar pronto para o novo recorde.
É um custo enorme quando toda a população fica sem acesso à água potável e precisa depender de transporte e racionamento. Quando calculamos o tamanho da tragédia no Rio Grande do Sul, não podemos considerar apenas o que foi destruído, mas o custo de as pessoas terem vivido essa experiência.
Esse episódio traz uma oportunidade de mudança?
A única oportunidade seria se a gente pudesse usar essa tragédia para preparar o estado para o que ainda virá, criar uma infraestrutura mais resiliente. Estou apostando meu dinheiro que isso irá acontecer? Não.
Há uma oportunidade também de convencer parte da população de que a questão climática não é uma conspiração do bilionário George Soros, mas não acho que seja falta de evidência, a quantidade de exemplos é tão grande que uma análise estatística mostraria que as tempestades vão se tornar mais graves, e isso deveria levar a uma mudança de visão das pessoas.
Infelizmente, gostaria de ser mais otimista.
Sua carreira acadêmica passou por diferentes campos, como interações sociais, finanças e economia verde. Como se deram as suas escolhas como pesquisador?
Tive muita sorte, pesquisava modelos matemáticos em economia e poderia ter ficado nisso. Quando cheguei à Universidade de Chicago, o departamento era muito interativo e dialogávamos sobre todo tipo de problema.
Comecei a pensar que seria mais divertido e mais próximo da minha personalidade que, em vez de trabalhar nos temas internos que eram gerados pela própria pesquisa econômica, poderia trabalhar com modelos matemáticos e problemas estatísticos e computacionais complexos.
Queria usar isso para entender questões de economia que eu tinha, como a da capacidade que as florestas tropicais têm, e em particular a amazônia, de capturar carbono e sobre o custo disso.
Sempre digo que não há campo da economia em que eu seja o melhor ou um dos melhores, posso ter sido pioneiro em alguns casos, mas substituí os campos em que trabalhei depois de um certo tempo.
Os futuros economistas têm se preocupado com temas diferentes daqueles que eram importantes quando o sr. era estudante?
As pessoas pensam na economia como se ela fosse uma coisa congelada, isso é completamente equivocado.
Uma das coisas que causam mudanças é a quantidade de dados que temos disponíveis hoje e que tornaram a análise estatística muito mais rica. O aluno de economia hoje conhece muito de computação e de métodos.
Os dados permitem testar uma série de hipóteses que também não podiam ser testadas antes, fazer análises muito cuidadosas que trazem grande conhecimento.
Há toda uma base que permitiu avaliar que programas de transferências condicionais de renda, como o Bolsa Família, eram uma maneira eficiente de melhorar um pouco a questão da pobreza.
Os alunos estão mais interessados em questões importantes sob o ponto de vista de política econômica.
Toda a discussão econômica ficou, de uma certa maneira, mais disciplinada também. Não basta dizer que um pensador falou isso e que é assim que as coisas funcionam, é importante pensar na implicação empírica disso, medir se é verdade ou não.
Como o sr. tem visto os protestos que ocorrem em universidades americanas, inclusive em Columbia, contra a ação de Israel em Gaza?
Estive quase um mês fora, viajando a trabalho, portanto não acompanhei o que tem acontecido no dia a dia.
Obviamente, as pessoas devem ter liberdade de expressão, só é irônico que muitos desses grupos que estão sendo mais vocais sobre o tema antes tentaram censurar o que não era considerado politicamente correto. Não é que eles não tenham o direito [de protestar], mas é irônico serem os mesmos personagens.
Agora, também acho que a universidade tem o direito de funcionar e, nesse sentido, os reitores de Columbia, Princeton e Chicago, que são as três universidades que acompanho mais de perto, estão fazendo a coisa certa: assegurar o direito de livre expressão, mas ao mesmo tempo limitar o quanto essas ações podem afetar a operação acadêmica.
Nunca quis ser reitor, é um trabalho muito difícil e creio que hoje seria ainda pior.
RAIO-X
José Alexandre Scheinkman, 76
Economista nascido no Rio de Janeiro, passou boa parte de sua carreira na Universidade de Chicago. É professor da Universidade Columbia, em Nova York, e ativista pela preservação do ambiente (Folha, 17/6/24)