Em entrevista à Folha, José Manuel Fernandes fala em janela única de oportunidade e que renegociar seria matar o acordo.
Quase 25 anos após o início das tratativas entre União Europeia e os países do Mercosul, a conclusão do acordo comercial entre os dois blocos passa por um momento de “agora ou nunca”. Se não for fechado em 2023, dificilmente será depois.
Esta é a avaliação de José Manuel Fernandes, eurodeputado português que lidera a delegação do Parlamento Europeu para relações com o Brasil e integra o grupo responsável pelas negociações com o Mercosul.
Em entrevista à Folha, Fernandes disse ser fundamental aproveitar o que chama de “janela de oportunidade” para concluir o acordo UE-Mercosul agora. “Se não for fechado este ano, dificilmente será fechado tão cedo”, disse.
O eurodeputado esteve no Brasil na última semana, junto a uma delegação de políticos europeus, para discutir o acordo e outros assuntos. A comitiva se reuniu com entidades empresariais, ONGs e autoridades como o vice-presidente Geraldo Alckmin, a ministra Marina Silva (Ambiente), e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco.
O acordo entre os dois blocos foi finalizado em 2019, no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL), mas não foi assinado e referendado pelos respectivos parlamentos.
Por estar na mesa há mais de duas décadas, há percepção de que aspectos hoje importantes não estão devidamente abordados no texto.
Do lado europeu, a principal queixa é sobre a parte ambiental. Atualmente, os blocos estão negociando um termo adicional (side letter) sobre compromissos ambientais. Na avaliação de membros do governo, as condições impostas pela União Europeia são muito rígidas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), inclusive, chegou a dizer que a proposta é “impossível de aceitar“, e que vai propor mudanças.
Fernandes contemporizou as críticas do Planalto à side letter, dizendo ser natural, e até positivo, que haja reações ao texto em busca de um equilíbrio. No entanto, ele praticamente descarta as chances de que o acordo seja reaberto. “Essa possibilidade existe, sempre. Só que essa possibilidade significa matar o acordo.”
Houve algum tema central nesta visita da delegação ao Brasil?
Há um tema central que é [o acordo] União Europeia-Mercosul. Um acordo que seria muito importante para ambas as partes. Aliás, só pode haver acordo, se ele for positivo para ambas as partes.
É mais do que um acordo comercial. É também uma defesa de valores que partilhamos: democracia, liberdade, Estado de Direito, direitos humanos, defesa da vida e da dignidade humana.
Algo que eu designo um chão comum. Quem partilha estes valores deve se unir. Até porque há notoriamente um ataque das ditaduras em relação às democracias.
O acordo UE-Mercosul deve ser feito com uma não-imposição de ambas as partes. Não é só uma questão de respeito, é uma negociação entre iguais, na qual não pode haver nenhum tipo de imposição. Terá de ser um acordo justo. Ninguém está em posição, nem pode dar lições a ninguém.
Este acordo representa uma força geopolítica enorme. [São] 750 milhões de pessoas, 25% do PIB [Produto Interno Bruto global], com um objetivo comum que é a sustentabilidade.
Esperávamos e gostaríamos que se aproveitasse a janela de oportunidade que existe. Até porque, do lado da UE, há eleições no próximo ano.
Era importante que se aproveitasse esta janela de oportunidade para encerrar este assunto que demorou 20 anos para ser anunciado —e que está congelado desde 2019.
Qual a possibilidade de que o acordo seja concluído ainda neste ano?
É difícil, mas é possível e é desejável. Estou confiante, porque há uma vontade política da parte de Lula que já foi manifestada publicamente também por outros países do Mercosul. Do lado da Europa, há também uma vontade política.
Nós, para termos um acordo, devemos ter um acordo comercial em que a parte política fique para mais tarde, de forma a podermos avançar com um todo. Para não se exigir a unanimidade e a retificação de todos os parlamentos nacionais.
Portanto, estou convencido que haverá a maioria no Conselho, que é o órgão dos Estados-membros, e também maioria no Parlamento. Essa possibilidade avançará.
Ninguém pode impor posições unilaterais. Há uma preocupação com a side letter que foi enviada.
Nós não devemos reabrir o acordo, ele deverá ser permanentemente atualizado. Não há acordos perfeitos.
Se estivermos sempre à espera da última novidade em termos de smartphone [por exemplo], nunca compraremos nenhum. Se estivermos sempre à espera do melhor acordo, nunca faríamos nenhum acordo, porque a realidade também é dinâmica.
Agora, há pessoas que estarão sempre contra o acordo, e que utilizam pretextos. Antes era Lula, agora pode ser os que querem reforços das questões ambientais, mas no final estarão sempre contra, porque há pensamentos protecionistas.
Claro que também há muita mentira e exageros. Considero, no entanto, que tudo isto é ultrapassado. Este é o momento. Se não for agora, não será depois.
A UE também precisa entender que tem obrigações. Quando não se ocupa um espaço, há outros que o ocupam —e que não têm os mesmos valores que partilhamos. Falo, por exemplo, claramente da China.
O sr. acredita que, se o acordo não for fechado este ano, não há chance de ser aprovado depois? Praticamente inviabiliza?
Sim. Se não for fechado este ano, dificilmente será fechado tão cedo.
Há quem queira reabri-lo, porque não tem coragem de dizer que é contra o acordo. Sabe que reabrindo o acordo, ele nunca mais será fechado e precisaremos de mais 20 anos. E daqui a 20 anos hão de voltar a inventar outros pretextos para a reabertura.
Há gente que não assume que é contra o acordo e depois procura todo tipo de pretextos para não aprová-lo.
Mas existe alguma possibilidade de reabertura?
Essa possibilidade existe, sempre. Só que essa possibilidade significa matar o acordo. Como disse, a política é dinâmica. Se abrisse o acordo, quando finalizasse já haveria coisas novas e teria que voltar a abrir.
O sr. mencionou uma boa vontade do presidente Lula, mas ele tem feito algumas críticas, principalmente à side letter. Algumas até enfáticas. Ele comentou, por exemplo, que a proposta atual seria impossível de aceitar. O sr. percebe uma resistência, apesar da boa vontade?
Eu entendo que quando a UE envia, sem conversar com os países do Mercosul, uma side letter, terá de haver uma reação a ela. Portanto, acho natural, até mesmo positivo, que se reaja para a procura do equilíbrio, porque nunca poderá haver um acordo que seja mais favorável à UE do que para o Brasil e os outros países. Os acordos têm que ser justos.
Agora, essa side letter, eu espero que haja uma resposta e que se chegue rapidamente a um entendimento no prazo curto.
Minha esperança é que na reunião da Celac [Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos], em julho, se feche o acordo.
Há também um bom sinal que é a vinda, em junho, da presidente da Comissão Europeia [Ursula von der Leyen], o que demonstra essa abertura, essa vontade política.
Sobre as questões específicas sobre meio ambiente, que têm sido o principal alvo de críticas. O sr. acredita que será possível convencer os governos do Mercosul a aceitar este formato ou há uma flexibilidade da UE?
Tem que haver uma flexibilidade. Em termos ambientais, nós temos de atuar já, mas não podemos querer tudo de uma vez.
Se não existir gradualismo, nós nunca atingiremos os objetivos e damos argumentos aos negacionistas e aos extremos. Tudo isso implica bom senso e flexibilidade de ambas as partes.
O que essa flexibilidade não pode significar é uma não-vontade em relação a atingir os objetivos. O que eu constato é que o Brasil está empenhado no desmatamento zero, o que não pode acontecer de um dia para o outro.
A UE, que tecnologicamente está num outro patamar, não pode dizer “vocês têm que vir para este patamar de repente”.
Como o sr. compara as negociações agora com as do governo Bolsonaro?
Com o governo Bolsonaro estava parado. Claro que também houve a questão da pandemia, que impossibilitou estes contatos presenciais, mas o acordo estava parado.
Um acordo que é importante para quem entende que a competitividade é essencial, que a sustentabilidade tem de estar presente, que tudo isto traz coesão territorial.
Criação de riqueza com sustentabilidade significa menos pobreza, e esse também tem que ser um dos nossos um dos nossos objetivos.
O governo Lula, diferentemente de Bolsonaro, tem se aproximado mais da China. O sr. acredita que se isso possa ser um peso para dificultar a conclusão do acordo?
A China e a UE também fazem comércio. Nós não podemos ser ingênuos com a China. Ela tem um objetivo de tornar todos dependentes da China.
[Pequim] Procura investimentos estratégicos de longo prazo, controlar as matérias-primas, o preço há de subir. Isto não traz equilíbrio. Uma China que está procurando se reforçar enormemente em termos militares.
Não esqueça que a China é uma ditadura. E eu considero que não há bons ditadores, sejam eles de esquerda ou sejam direita. São ditadores.
A China, que tem 1,4 bilhão [de pessoas], não está baseada nos valores como nós estamos. Nós devemos privilegiar aqueles que defendem os nossos valores.
Com a China, devemos manter o relacionamento. Sabendo que é um relacionamento que não deve ser privilegiado face a quem, como Brasil e países do Mercosul, defendem o mesmo que nós defendemos.
Havia na programação um encontro marcado com Lula…
Nós tentamos, mas não chegou a ser marcado. Nós compreendemos bem a agenda neste momento do presidente Lula, que defende um Brasil mais aberto. Nós também queremos que a Europa, a União Europeia esteja aqui.
Além das críticas à parte ambiental do acordo Mercosul-UE, há membros do governo que criticam a legislação recente sobre produtos oriundos de desmatamento. Como o sr. vê as críticas de que seria uma decisão unilateral?
A UE quando legisla, nomeadamente no [ato sobre] desmatamento, depois no Cbam, que é um mecanismo de ajuste de carbono nas fronteiras, tem como principal objetivo incentivar e não penalizar.
Nestas normas, [a meta] não é ter uma receita. É incentivar que tenham normas de forma que [os países] não emitam e que haja um respeito e um objetivo de diminuir as emissões de carbono.
Mas há um ponto. O próprio Brasil quer o desmatamento zero. Portanto estamos de acordo nisso. Se puder acelerar esse desmatamento zero – e se o acordo até puder ter alguns incentivos para isso – tanto melhor.
Mas é necessário entender, e isso tem que estar na negociação, que o gradualismo precisa estar presente. É impossível haver desmatamento zero de imediato.
Eu não dramatizo isso porque acho normal de ambas as partes. Agora, ambas as partes têm que entender o outro e tentar arranjar uma solução de equilíbrio.
Parte das críticas a essa legislação é que ela considera, inclusive, o desmatamento legal, enquanto a legislação brasileira permite algum tipo de desmatamento. Como que o sr. vê isso?
Esta legislação quando é feita não está olhando especificamente para um ponto do globo. Há aqui, agora, uma negociação de ajustes que deverão ser feitos.
Pode haver até algum desmatamento que seja legal e que até possa, por alguma razão, ser absolutamente justificável. Isso tem de ser acomodado. Ainda que, no princípio geral, estejamos todos de acordo.
Nós não temos grandes diferenças nos objetivos. Temos que entender que a realidade de cada um não é a mesma. Há pessoas na Europa que não têm compreensão de que o Brasil tem o dobro da área da UE. Há aqui uma realidade, uma série de biomas, que não existem em mais lado nenhum.
Como a UE tem acompanhado o comprometimento do Brasil com o tema ambiental? Acha que o Brasil poderia estar fazendo mais?
Acho que o Brasil está completamente comprometido. Claro que, na UE, as metas que temos, que são altamente ambiciosas, geram discussão e não há certeza de que se consigam atingir. Mas é bom ter ambição.
O Brasil, ao ter uma ministra como Marina Silva no Meio Ambiente, dá uma prova de empenho. Pode haver a percepção de que deveria ser mais ambicioso. Isso pode haver sempre, mas nós não podemos esquecer da realidade. Temos que ter uma ambição conjugada com a palavra realismo.
Como está a imagem do Brasil hoje no mundo?
Está a imagem de um Brasil aberto. Um Brasil que está programando e procurando um bom futuro para os brasileiros, mas sabendo que esse bom futuro para os brasileiros implica um Brasil aberto, que não se fecha sobre si mesmo.
RAIO-X
José Manuel Fernandes, 55 – Eurodeputado do Grupo do Partido Popular Europeu (Democratas-Cristãos), e presidente da delegação de Portugal na viagem ao Brasil. É chair da delegação do Parlamento Europeu para as relações com o Brasil e membro do grupo responsável pelas relações com o Mercosul (Folha de S.Paulo, 21/5/23)