Secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), João Paulo Capobianco acredita na reversão da eventual transferência da gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) da pasta do Meio Ambiente para o Ministério da Gestão, Inovação e Serviços Públicos, conforme proposto pelo relatório da Medida Provisória 1.154/2023, que dispõe sobre a reestruturação do governo e tramita na Câmara dos Deputados. Uma decisão neste sentido já foi deferida pela Comissão Mista que avalia a MP. Agora, o tema vai para votação no plenário da Câmara e, posteriormente, para apreciação do Senado. “Na nossa avaliação, a transferência (do CAR para a Gestão) não é correta porque vai exigir uma série de ações para viabilizar a operação do Cadastro Ambiental Rural. É uma discussão a ser feita e estamos trabalhando para reverter a medida na tramitação da MP. Não quero dizer que o CAR na Gestão não vá funcionar, mas o lugar correto definido pelo próprio Código Florestal em 2012 é o MMA”, disse Capobianco, em entrevista exclusiva ao Broadcast Agro. “O CAR é um cadastro. É um cadastro que registra a situação de adimplência ou inadimplência ambiental das propriedades rurais. É um sistema de gestão dos ativos naturais nas propriedades rurais”, detalhou.
No governo anterior, de Jair Bolsonaro e com o Ministério da Agricultura sob gestão de Tereza Cristina, a implementação do CAR estava sob a responsabilidade da pasta da então ministra, por meio do mesmo Serviço Florestal Brasileiro (SFB). No atual governo, porém, o SFB, e consequentemente o CAR, passou para o guarda-chuva do MMA. Agora, a Câmara dos Deputados aprecia essa alteração e outras alterações, entre elas, a mudança do CAR para a Gestão.
Capobianco diz não entender o argumento, usado por parte do setor produtivo e pela bancada ruralista no Congresso Nacional, de que, com a transferência do CAR para o Ministério da Gestão, o sistema estaria abrigado em uma pasta “neutra”. “O CAR é uma informação ambiental e, portanto, não faz sentido dizer que teria que ficar em um ministério neutro. Quem utiliza as informações são órgãos que operam a questão ambiental, mas quem consulta o CAR é o sistema financeiro. Se ele está no MMA ou em outro ministério será consultado da mesma maneira. Como se tratam de informações ambientais da propriedade rural e quem é responsável por gerir e responsabilizar a questão ambiental é o MMA, o CAR deveria estar no MMA”, argumentou.
Ele refuta também a alegação de que o CAR possa ser usado para “patrulhamento ambiental” e lembra que, nos Estados, os cadastros são validados pelos órgãos ambientais estaduais. “O CAR é um sistema de defesa do produtor rural e não de prejuízo a ele, em um mundo onde as legislações ambientais crescem diariamente. Vejo o CAR com finalidade dupla: leva proteção ambiental à medida que os produtores rurais se adaptem à legislação e protege o produtor à medida que comprova que ele está em conformidade com a questão ambiental, seja porque cumpre os requisitos, seja porque está se regularizando com o Programa de Regularização Ambiental (PRA)”, defendeu.
Número 2 de Marina Silva, o ambientalista rebate a “narrativa” de que as modificações propostas na MP original seriam uma derrota para a ministra. “Não se trata de disputa com a ministra. Estamos falando da implementação de lei de 2012 aprovada pelo próprio Congresso Nacional. Estamos tratando de algo de interesse nacional, não é de interesse da ministra ou do MMA e, sim, uma responsabilidade institucional do ministério que foi conferida pelo legislador”, afirmou. “Se trata de colocar uma dificuldade na implementação de uma lei aprovada no Congresso, que é necessária para a proteção do meio ambiente e do produtor rural.”
Veja os principais trechos da entrevista:
Broadcast Agro: O relatório da MP da reestruturação do governo transfere a gestão do CAR do MMA para o Ministério da Gestão. O MMA buscará reverter essa possível migração no plenário da Câmara e posteriormente no Senado?
João Paulo Capobianco: No processo de elaboração do relatório, nos reunimos com o relator da MP (deputado federal Isnaldo Bulhões, MDB-AL), tratamos deste assunto, mostramos todos os argumentos favoráveis à permanência do CAR no MMA, como foi originalmente concebido quando o Código Florestal foi aprovado, em 2012. De 2012 a 2018, o CAR funcionou no MMA sem nenhum tipo de problema. No governo passado, transferiram o CAR para o Ministério da Agricultura.
Agora, o governo do presidente Lula apenas reorganizou como era anteriormente e trouxe de volta o CAR para o MMA, como sempre foi e prevê o Código Florestal. Mostramos ao relator a importância do CAR, a relevância de ele estar no MMA, porque ele foi criado como um sistema ambiental. No relatório final da MP, porém, fizeram essa mudança.
Vamos, a partir de agora, argumentar e esclarecer que, na nossa avaliação, a transferência não é correta porque vai exigir uma série de ações para viabilizar a operação do CAR. É uma discussão a ser feita e estamos trabalhando para reverter na tramitação da MP.
Broadcast Agro: Na sua avaliação, por que o CAR deve ficar no Meio Ambiente? A bancada ruralista, por exemplo, defende a que a ida do CAR para a Gestão vai acelerar a digitalização da análise dos cadastros e que assim o sistema estaria em um ministério “neutro”.
Capobianco: O CAR é um cadastro. É um cadastro que registra a situação de adimplência ou inadimplência ambiental das propriedades rurais. É um sistema de gestão dos ativos naturais nas propriedades rurais. Não trata da questão da produção agropecuária, não trata de informações para além das obrigações ambientais da propriedade.
Não pode ser neutro ou não neutro. Há um uso das informações do cadastro, que são públicas. Quem inclui as informações e propriedades rurais no cadastro não é nem sequer o governo federal, mas os governos estaduais, por meio de seus órgãos ambientais. E isso nunca foi tratado como problema. Não sei de onde surgiu a ideia de que isso poderia ser uma ferramenta que prejudicaria o setor rural.
Quem criou a ferramenta foi o próprio Congresso Nacional, quando legislou sobre o Código Florestal, e serve justamente para garantir que o crédito rural e outras ações beneficiem aqueles que estiverem legalmente corretos do ponto de vista ambiental. Reforço, novamente, que o CAR é uma informação ambiental e, portanto, não faz sentido dizer que teria que ficar em um ministério neutro.
Quem utiliza as informações são diversos órgãos que operam a questão ambiental, mas quem consulta o CAR é o sistema financeiro. Se ele está no MMA ou em outro ministério, será consultado da mesma maneira. Como se tratam de informações ambientais da propriedade rural e quem é, atualmente, responsável por gerir e responsabilizar a questão ambiental é o MMA, o CAR deveria estar no MMA, como ocorre nos Estados.
Broadcast Agro: Parte do setor produtivo e da bancada ruralista alega que, dentro do MMA, pode haver uso indevido das informações do CAR para “patrulhamento ambiental”. A lei de proteção de dados não garante a proteção dessas informações?
Capobianco: O que seria o uso indevido? Se tenho uma propriedade rural, tenho uma reserva legal e área de preservação permanente e não tenho nenhum problema, para mim é útil ter essa informação porque, cada vez mais, o mercado e os compradores querem ter esse tipo de informação ambiental do produtor. Por isso o CAR é uma ferramenta extremamente importante para quem está regular.
Quem está irregular, tem reserva menor do que a exigida ou área de preservação permanente não devidamente protegida, ainda pode lançar mão do Programa de Regularização Ambiental (PRA) para se regularizar. Ele estará no CAR com desconformidade, mas terá crédito e acesso aos mercados garantidos, porque mostrará que está implementando o PRA.
Não entendo de que forma o MMA poderia fazer uso indevido das informações. O sistema de proteção à informação garante, de fato, que determinadas informações sejam protegidas, como a própria lei define. Evidentemente, aqueles que estejam em desconformidade com obrigações ambientais previstas em lei e que talvez queiram continuar assim realmente preferissem que o CAR estivesse inativo.
Talvez sejam eles que queiram que o CAR não funcione e agora propõem mudanças, talvez motivados pela ideia de que, tirando a gestão do MMA, não vai funcionar. Não faz sentido porque, enquanto ficou na Agricultura, funcionou. Além disso, não entendo por que determinados setores acham que deveriam ter órgão neutro para gerir o CAR, sendo que é um cadastro que registra informações da realidade. Aparentemente, a quem interessaria um CAR disfuncional? Àqueles que não estão em conformidade com a lei, porque daí seguiriam gozando de benefícios, mesmo estando irregulares, como por exemplo contraindo crédito rural.
Para quem não gosta de cumprir a lei, o ideal, de fato, seria não ter esse cadastro. Para quem não quer cumprir a lei ambiental, o ideal é que não tenha cadastro funcionando. Não quero dizer que o CAR, no Ministério da Gestão não vá funcionar, mas o lugar correto, definido pela própria lei ambiental, é o MMA.
Broadcast Agro: O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, disse recentemente que nem a pasta que ele comanda seria mais complacente, e nem a pasta da ministro do Meio Ambiente, Marina Silva, seria mais rigorosa na aprovação do CAR, porque são os órgãos estaduais que fazem a análise e que tem de se respeitar o Código Florestal.
Capobianco: Sim. Exatamente. É um cadastro com informações ambientais da realidade. Os órgãos estaduais ambientais que validam o CAR.
Broadcast Agro: Fávaro também afirmou recentemente que a grande dificuldade do avanço do CAR está na concepção do sistema, que no entender dele, é extremamente falho, por ser autodeclaratório. Ele avalia também que o CAR já passou por vários ministérios e a validação mesmo assim não avançou. Hoje, dos 6,944 milhões de cadastros registrados, apenas 0,67% foi validado pelos órgãos estaduais. Na sua opinião, o que falta para avançar?
Capobianco: De fato, temos problema da ferramenta (de análise e validação do CAR) nos Estados e estamos falando de milhões de registros. Houve dificuldade de implementação (do sistema) e isso ocorreu inclusive na Agricultura. O MMA avançou no cadastro e na gestão dos dados, que é voluntária.
Além disso, o CAR é muito frágil e vem enfrentando dificuldades para avanço na validação nos últimos anos, sobretudo pela sobreposição de parte dos cadastros (ou seja, dois proprietários rurais declaram a mesma porção de terra ou sobrepõem a declaração de terra sobre áreas de preservação ou indígenas, por exemplo). Foram desenvolvidas metodologias de validação automatizada, a chamada análise dinamizada, que permite separar casos que não têm problemas daqueles que precisam de uma análise e validação mais rigorosas.
São mecanismos que permitem separar um volume grande de cadastros em conformidade de forma automatizada e deixaria a parte menor, com desconformidades, para avaliação mais individualizada e pormenorizada. Esse processo está em andamento e precisamos avançar na validação.
O ministro está correto: não adianta a propriedade estar inserida no cadastro se não há checagem de que o dado colocado lá está correto (o preenchimento do CAR é autodeclaratório). Houve demora (na análise e validação dos cadastros) por dificuldade do poder público nos Estados e no governo federal. Mas muitas metodologias estão sendo implementadas e acredito que possamos dar um salto de qualidade na validação.
Broadcast Agro: Há uma certa acomodação dos produtores rurais em de fato pressionar para o CAR andar? A única forma de “punição” a que o produtor está sujeito é, até o momento, o não acesso ao crédito oficial, caso não tenha preenchido o cadastro. Além disso, regularização ambiental e reflorestamento exigem elevado investimento – e quem arca com isso geralmente é o produtor rural.
Capobianco: Isso diz respeito à própria legislação ambiental. Você tem o Código Florestal, que traz uma legislação que tem de ser cumprida. O CAR é uma ferramenta para garantir o cumprimento do Código Florestal. É o instrumento para garantir a implementação do código na prática, que é considerada a legislação fundamental para a sustentabilidade da produção agropecuária.
Nesse sentido, aqueles que não querem se adequar à legislação são certamente os contrários ao CAR, aqueles que não querem que funcione para não restringir o acesso a crédito. É uma certa ingenuidade, porque toda a questão do avanço das regulações nacionais e internacionais vão exigir cada vez mais a comprovação da regularidade ambiental. Isso é uma realidade. Não se trata mais de algo que virá. O produtor rural precisa estar adequado ao que já está no mercado para receber crédito, para vender seus produtos.
Ele precisa se adequar, e a forma de comprovar isso e proteger o produtor e seu produto de barreiras comerciais e ambientais é ter uma ferramenta crível, comprovando que ele cumpre a legislação, que é o CAR. O CAR é um sistema de defesa do produtor rural e não de prejuízo a ele, em um mundo onde as legislações ambientais crescem diariamente.
É um sistema de defesa da produção, além de ser fundamental para a defesa de um meio ambiente equilibrado. Vejo o CAR com finalidade dupla: leva proteção ambiental à medida que os produtores rurais se adaptem à legislação e protege o produtor à medida que comprova que o produtor está em conformidade com a questão ambiental, seja porque cumpre os requisitos, seja porque está se regularizando com o PRA.
Broadcast Agro: Pensando nessa maior cobrança pela política ambiental do Brasil e na pressão externa sobre o agro brasileiro, esse esvaziamento do MMA – caso as modificações na MP sejam aprovadas – pode prejudicar o próprio agro na defesa da sustentabilidade do setor no mercado externo? Qual é o recado dado ao exterior com esse possível esvaziamento do MMA?
Capobianco: Eu não chamaria de esvaziamento, chamaria de transferência de competências. A obrigação continua no governo e está sendo deslocada entre os órgãos. Quando você desloca para órgãos que têm parte interessada no uso do recurso, você tira a independência da análise e cria o que chamamos de conflito de interesse. Quando você opera da maneira como o Congresso está operando, prejudica o conjunto da sociedade. Estamos falando de legislação ambiental.
Quando você transfere a gestão da legislação ambiental para outros órgãos, está fragilizando a gestão e colocando suspeição sobre ela. Veja, por exemplo, outra mudança proposta na MP, a retirada da gestão dos recursos hídricos do MMA para o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional, que é um ministério usuário (dos recursos hídricos) e que implementa obras de infraestrutura.
Isso afeta todos os setores e o agro principalmente, tanto no CAR quanto nos recursos hídricos, porque coloca suspeição sobre a capacidade de o Brasil fazer uma gestão adequada dos recursos naturais. Isso gera dúvidas e questionamentos sobre o avanço de fato na conservação.
Broadcast Agro: Seria a raposa cuidando do galinheiro?
Capobianco: Acho que essa expressão é forte, mas na recomendação da boa gestão você não deve submeter gestão e planejamento a determinados usos daqueles recursos (Broadcast, 26/5/23)
Coalizão do Agro critica mudanças na governança do CAR e na gestão de recursos hídricos
A Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura alertou sobre possíveis danos que o relatório da Medida Provisória 1.154/2023 pode causar ao sistema de governança ambiental do País, entre eles a paralisação da implementação do Código Florestal. “As alterações propostas pelos parlamentares à MP impactarão negativamente os produtores rurais, trazendo graves prejuízos à imagem e reputação internacional do País, logo quando o Brasil começa a recuperar seu protagonismo nas agendas de clima e florestas”, disse em comunicado a Coalizão, que é composta por mais de 350 entidades do agronegócio, além de empresas, organizações da sociedade civil, setor financeiro e academia.
Segundo o grupo, o impacto ao Código Florestal seria resultado da transferência da gestão do Cadastro Ambiental Rural (CAR) do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) para a responsabilidade do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Para a coalizão, este ministério não possui pessoal técnico qualificado ou tecnologia da informação para recepcionar o CAR. “Esta engrenagem, que permite a análise de dados e regularização dos passivos ambientais, funciona sob a coordenação do Serviço Florestal Brasileiro e é imprescindível para a implementação do Código Florestal e para a regularização ambiental da produção rural no país.”
A coalizão destacou que as novas legislações internacionais sobre comércio e desmatamento demandam “celeridade e eficiência na implementação da lei florestal”, sob risco de o País sofrer “indesejáveis restrições comerciais”. Para o grupo, a manutenção do Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural no Serviço Florestal Brasileiro seria parte fundamental dessa estratégia.
O grupo também criticou a possível transferência da Política Nacional de Recursos Hídricos e da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico do MMA para o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. “Este movimento demonstra uma visão estreita do tema da segurança hídrica, como se fosse um assunto ligado somente à infraestrutura”, disse a Coalizão. A água “é, também, um elemento central para políticas ligadas à conservação ambiental e ao combate às mudanças climáticas. O MMA, portanto, é a pasta que melhor atende à transversalidade exigida para o tema.” (Broadcast, 26/5/23)