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Alas do governo divergem sobre renegociação do acordo entre UE e Mercosul

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Trecho sobre compras governamentais é alvo de contestação de ministérios.

O avanço do acordo de livre comércio entre União Europeia e Mercosul esbarra tanto em novas condicionantes pedidas pelos europeus como em divergências internas do governo Lula sobre a necessidade de renegociar pontos específicos do tratado.

Os entraves colocam em risco a promessa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de dar um desfecho para as negociações ainda neste ano —desfecho que, na prática, não depende só de Lula, mas, sim, da aprovação de 31 países membros dos dois blocos.

O próprio chefe do Executivo critica os termos pactuados em 2019 pelo então governo Jair Bolsonaro (PL). Em janeiro, durante visita do primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz, Lula disse que o texto precisa passar por mudanças. Ele citou as compras governamentais como ponto central de preocupação, argumentando que elas “fazem crescer pequenas e médias indústrias brasileiras”.

O acordo prevê que, ao assumir compromissos em relação aos mercados de compras públicas, União Europeia e Mercosul garantam maior concorrência e acesso nas licitações domésticas. Também estabelece que os fornecedores de bens e serviços de cada lado serão tratados como se fossem domésticos nas licitações realizadas pela contraparte.

Esse é um tema visto como crucial para o Brasil por corresponder a uma parcela significativa do PIB (Produto Interno Bruto) do país e por ser o mecanismo pelo qual o governo pode exercer suas políticas públicas para cumprir objetivos de desenvolvimento e redução de desigualdades.

Está em debate por exemplo a dificuldade nos chamados off-services, quando se colocam especificidades em uma licitação pública, como aquelas que envolvem transferência de tecnologia.

Segundo interlocutores que acompanham as conversas, o ponto é alvo de contestação do Ministério da Gestão e da Inovação. Há temor de que as condições acordadas no texto original engessem as compras públicas e dificultem uma reação rápida do governo em casos excepcionais, como em uma pandemia.

Procurada, a pasta disse que, no momento, “realiza uma revisão sobre o acordo que havia sido iniciado na administração passada”.

O argumento encontra eco em outras alas políticas do governo Lula, como o grupo ligado ao ex-chanceler Celso Amorim –hoje chefe da Assessoria Especial do presidente– e a Casa Civil. O atual teor do acordo nesse dispositivo afetaria áreas como Saúde, Educação e Ciência e Tecnologia, que são mais dependentes de políticas públicas.

Na gestão petista, há o entendimento de que o acordo negociado contém um “desequilíbrio muito grande” e é desfavorável para o bloco sul-americano –formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Na visão de autoridades brasileiras, a assinatura do tratado comercial só faz sentido se caminhar na linha de desenvolvimento social e reindustrialização.

Nesse contexto, o fato de Mercosul e UE estarem negociando atualmente um termo adicional sobre compromissos ambientais serve de argumento para os que defendem a renegociação de outras partes do acordo. Na avaliação de um membro do governo ouvido pela Folha, a inclusão de exigências adicionais que não estavam na proposta original já configura, na prática, uma reabertura do tratado –ainda que não de maneira formal.

É o entendimento, por exemplo, da Casa Civil. Procurada, a pasta indicou que a apresentação do instrumento complementar –chamado de side letter– abre “necessariamente” uma rodada de estudos, discussões e debates para que se possa firmar uma posição do Brasil e do Mercosul.

“Adicionalmente, a apresentação de novos termos do acordo no formato da side letter europeia também enseja, de forma análoga, a elaboração de uma contraproposta”, diz, em nota.

Os negociadores brasileiros, em conjunto com os pares sul-americanos, planejam espelhar a estratégia europeia e acomodar as preocupações do Mercosul, além de reforçar alguns pontos de interesse, por meio de um documento adicional que ainda está sendo trabalhado.

A articulação para aprofundar as negociações em determinados quesitos, contudo, esbarra no interesse de ministérios ligados à área econômica, como Fazenda; Planejamento e Orçamento; e Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além do Itamaraty –mais inclinados a fechar de vez o acordo de livre comércio.

As alas mais pragmáticas consideram que o tratado, ainda que insatisfatório e aquém do esperado pelo governo brasileiro mesmo após ter sido negociado nas duas últimas décadas, traria benefícios para o país, como uma maior diversificação das exportações. Também acreditam que uma eventual reabertura do acordo poderia implicar um prolongamento indefinido das discussões.

Na interpretação de interlocutores do governo, há também maneiras de se chegar a termos mais favoráveis ao Mercosul usando brechas do próprio texto original. No quesito das compras governamentais, por exemplo, há um artigo que trata especificamente de modificações e retificações de cobertura, o que viabilizaria uma revisão de questões mais incômodas.

Nos bastidores, alguns envolvidos têm a percepção de que a deliberação ganhou contornos mais políticos do que técnicos. Isso seria simbolizado, por exemplo, pela decisão de realizar reuniões na Casa Civil, em vez de discutir o tema em outros órgãos do governo.

A Casa Civil, por sua vez, afirma que, “como órgão responsável pela coordenação de governo, precisa ouvir as observações e análises em construção pelos diversos órgãos que estão trabalhando no material do acordo, seus termos, anexos, referências e, agora, a side letter.”

De modo geral, os participantes das conversas veem correntes distintas no país atuando para influenciar o desfecho do acordo. Uma ala avalia que os termos atuais são incompatíveis com a agenda do governo Lula. Outra vê espaço para negociar as condições de forma que se alinhem aos interesses da administração petista, enquanto alguns atores individuais desejam fechar o tratado de qualquer jeito.

Nos dois últimos grupos, a percepção é de que a não conclusão do acordo é problemática e não convém ao Brasil. Segundo pessoas a par das discussões, outros sócios do Mercosul —principalmente Uruguai e Paraguai— também estão firmes na defesa da posição de não reabertura do tratado.

Para a Casa Civil, possíveis divergências entre os ministérios são “naturais e saudáveis”.

Na diplomacia brasileira, mais do que um acordo de livre comércio, o acerto com a União Europeia é visto como um elemento importante de inserção do país na geopolítica internacional e evidencia a credibilidade negociadora do Mercosul.

O ponto final nas negociações, por outro lado, também passa pela reação dos europeus à contraproposta do Mercosul. Há ceticismo quanto à ratificação da proposta no Parlamento europeu em meio à resistência de países como França, Áustria e Irlanda. Um encontro entre as partes está previsto para o fim de maio, em Buenos Aires.

O governo brasileiro vê uma janela de oportunidade para a conclusão do acordo no segundo semestre, quando o Brasil assumirá a Presidência rotativa do bloco sul-americano e a Espanha, que também tem interesse no acerto, presidirá o Conselho da União Europeia.

No discurso de encerramento do Fórum Empresarial Brasil-Espanha, em Madri em 25 de abril, Lula chamou o contexto de “feliz coincidência” e falou em engajamento no diálogo com os europeus para que se tenha “boas notícias” ainda neste ano (Folha de S.Paulo, 8/5/23)

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