João Hummel, fundador do Instituto Pensar Agro, afirma que projeto de lei aprovado na Câmara traz clareza a critérios para definição de territórios.
O avanço do marco temporal na Câmara aconteceu sob protestos de alas do governo federal e movimentos indígenas. Após ter sido aprovado por 283 votos a favor e 155 contra, o projeto de lei 490 segue agora para o Senado, onde deve enfrentar mais resistência, ao mesmo tempo que o tema voltará a ser julgado pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Fundador do Instituto Pensar Agro, o fiador da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) e da bancada ruralista no Congresso, o agrônomo João Hummel defende a proposta, diz que ela não deve rever territórios já demarcados e que aumentará a segurança jurídica para investimentos ao definir regras mais claras para as terras em disputa.
“[A lei] Vai consolidar o que existe hoje. Aquilo que está demarcado, está demarcado, acabou. Os índios já não estão nessa área. O que queremos é segurança para o que vem pela frente”, diz.
Durante a entrevista, Hummel usa o termo “índio”, não adotado pelos movimentos indígenas por ser interpretado como uma herança colonial. O nome da Funai, antiga Fundação Nacional do Índio, passou a ser neste ano Fundação Nacional dos Povos Indígenas, por exemplo.
A tese do marco temporal, defendida pela FPA, determina que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada ou reclamada pelos povos na data da promulgação da Constituição Federal de 1988. O principal argumento a favor da medida é o de garantir segurança jurídica.
Os indígenas refutam a ideia e argumentam que, pela Constituição, têm direito a seus territórios originais, não limitados por uma determinada data.
Por que o sr. defende o marco temporal? Atrás do marco temporal tem um conceito que é o direito originário. Se prevalecer o direito originário, o povo brasileiro não tem direito à propriedade. Qualquer etnia pode requerer o seu território e, com isso, eu sou expropriado e perco meu patrimônio. Se eu não tiver um marco temporal falando que quem estava em posse disso, naquela época, é o dono, tudo fica para os índios. Então o brasileiro que construiu, evoluiu, não tem direito ao patrimônio, é tudo do índio?
Constituições anteriores já tratavam do direito a terra dos indígenas. Por que a de 1988, e não outra, para a definição do marco? Porque é a data da Constituição. Ali resolveram o seguinte: de agora para frente, a gente precisa consolidar o que está feito, para trazer segurança jurídica e poder fazer investimento. Você vai construir uma casa onde você não sabe se é seu ou não? Tem que ter um marco, e a Constituição daquela época falou que, em cinco anos, [as terras] tinham que estar resolvidas. [Hoje] não tem nada resolvido, gera uma grande insegurança.
A Constituição de 1988 fala em “terras indígenas tradicionalmente ocupadas”… Os índios eram nômades no Brasil, então eles podem querer o Brasil inteiro?
Você entende que deve haver uma reparação pela chamada “dívida histórica” do Brasil com os indígenas? Que reparação? O PL 490 trata do seguinte: na Raposa Serra do Sol, havia 19 condicionais [colocadas pelo STF] para se mudar o processo de como se demarcar terras indígenas. O que está sendo colocado no projeto é dentro dessas condicionantes. Colocando um novo marco transparente, regras claras de como deve ser um procedimento de demarcação de terras indígenas.
Tem reservas com mil índios e não sei quantos mil hectares. Eles utilizam esses hectares? Para quê? Por que não podem explorar isso? Eles querem celulares, ter uma vida igual a nossa, evolução. Vou proibi-los disso? Eles vão viver com mil hectares, que valem um enorme patrimônio, e viver pelado, sem direito a celular, comunicação, informação, tradicionalmente, como um museu?
Mas o marco não trata disso… O PL 490 fala sobre tudo isso.
Sobre o uso da terra… Sobre o uso, a forma como vai demarcar, qual o impacto social disso.
Em vez de 1988, o marco poderia ser outra data? Essas regras podem ser debatidas? Não, você tem que ter uma regra, sem regra não tem parâmetro, fica individualizado, conforme o Supremo definir. E qual é a segurança que você tem sobre a sua realidade?
Você defende que as demarcações já feitas sejam revistas para se adequar à nova lei? Ela vai consolidar o que existe hoje. Aquilo que está demarcado está demarcado, acabou. Os índios já não estão nessa área. O que queremos é segurança para o que vem pela frente. Em momento algum o projeto diz isso [de revisão de terras].
Aquilo que já foi definido como terra particular e não tem presença de índio, seja definido [dessa forma]. Se tiver alguma que tem briga, disputa, apliquem-se esses novos processos que estão no PL 490. E se estiver justo, dentro das regras, seja demarcado.
A marca vai ser bom para a sociedade, vai trazer segurança para investimentos, e para os índios, que poderão discutir o que querem da vida, se é explorar aquilo economicamente, fazer um museu para preservar parte da vida deles.
ENTENDA O PROJETO DO MARCO TEMPORAL
A tese
O marco temporal determina que a demarcação dos territórios indígenas deve respeitar a área ocupada pelos povos na promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.
A crítica
Os movimentos indígenas discordam da tese e afirmam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvos de séculos de violência e destruição de aldeias; portanto, entendem que as terras que são de direito dos povos não devem ser balizadas por uma data.
Os ruralistas
Defendem a tese sob argumento de que dará mais segurança jurídica ao agronegócio.
O STF
O Supremo pautou para 7 de junho a retomada do julgamento que vai decidir se a tese é válida ou não. Até agora, o ministro e relator Edson Fachin votou contra o marco. O ministro Kassio Nunes Marques, a favor.
O projeto de lei
Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei que institui o marco temporal. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), buscava aprovar o texto antes do julgamento do STF, o que ocorreu nesta terça (30). O texto ainda passará ao Senado
E o caso de um povo indígena que cresceu de 1988 para cá? Cresceu, fazer o quê? Vão ter que se adaptar.
O projeto tem critérios de relevância nacional, subjetivos, para permitir ou não empreendimentos em terras indígenas. Isso está dentro da política. Em Roraima, quantos anos [se viveu com energia] à base de combustível porque não se podia fazer um linhão de energia, que passava dentro de uma terra indígena? O Brasil precisa de fertilizantes e tem uma mina viável de exploração, não está numa terra indígena, mas não pode [explorar] porque pode virar uma terra indígena. É justo?
Mas e se tiver dentro de uma terra indígena? Aí precisa ter uma autorização, fazer uma discussão, passar pelo Congresso. O projeto não tira nada disso. O que precisa se saber é isso: qual o impacto social e qual o custo? O impacto precisa ser avaliado e mitigado. A vida é uma avaliação de risco, tudo tem risco.
E como deve ser feita essa avaliação? Está escrito na lei. É uma discussão de anos, feita inclusive dentro do Supremo, que é uma boa regra, para trazer segurança jurídica. Para ter investimento, precisa de segurança jurídica. Quando há insegurança, é preciso acrescentar uma taxa de risco.
Não há o risco de o projeto gerar mais conflitos em terras reivindicadas pelos indígenas? Só que agora eles seriam responsabilizados, porque eles não vão poder fazer isso. Deve-se aplicar a lei. A lei vale tanto para a gente quanto para eles. Igual a nós, o mundo vai crescendo e a gente vai se adaptando.
Se o STF julgar contra a tese do marco como inconstitucional, isso derruba o projeto? De jeito nenhum. Qual vale mais, a lei ou a decisão do Supremo? Ou então, se faz uma PEC [Proposta de Emenda à Constituição]. O Congresso é que determina essas regras, tem a responsabilidade de fazer essa segurança jurídica. Se o Supremo decidir contra o marco temporal, cabe ao Congresso fazer uma PEC copiando literalmente o texto [do projeto] e corrigindo as teses que dizem que não pode haver o marco temporal.
Justamente por tratar de temas da Constituição, não seria equivocado tramitar o marco temporal como projeto de lei? Não teria que ser uma PEC? No nosso entendimento, estamos regulamentando a Constituição. Baseado em uma decisão do próprio Supremo. A pergunta que eu faço: a representação da sociedade é feita pelo Supremo ou pelo Congresso?
O Supremo não pode legislar, a legislação é feita no Congresso. Ele pode até discutir o [conceito] de direito originário, que não está descrito em lugar nenhum, é um princípio, mas não pode legislar.
Você defende que o processo de demarcação passe do Executivo para o Legislativo? Sou contrário, discuti muito isso, mas acho que se for um processo transparente e com participação da sociedade desde o início, não tem essa necessidade.
O que você entende por participação da sociedade? O texto diz que devem ser criados comitês. Cidades, comunidades, todos tem que ser comunicados que naquele local vai começar um estudo [para demarcação], para poderem participar do grupo de estudos, não só os antropólogos. E todo mundo vai defender seus interesses, todo mundo vai ter argumentos e tempo para decidir.
Quando a lei fala na possibilidade de avaliar a perda de “traços” culturais de uma comunidade, isso seria aplicado, por exemplo, para o caso da terra do Índio do Buraco [indígena que resistiu sozinho em uma área de preservação reivindicada por fazendeiros em Rondônia]? Cada caso… Se fosse uma área no centro de Brasília, que não tem índio mais, volta para a União. A União vai fazer isso da melhor maneira possível, se for numa área que precisa preservar, aí é uma decisão da sociedade, que tem uma necessidade sobre cada área. Se for interessante ter um parque, pode ter um parque.
Mas a perda do traço cultural não é subjetivo? Como seria feita essa avaliação? Se não tem mais a comunidade, ela perdeu o traço. Se demarca a terra indígena por necessidade cultural. Se perde a necessidade cultural, perde o princípio da demarcação.
Mas o que seria “perder a necessidade cultural”? Isso tem que definir. Argumentando filosoficamente, se eu uso um princípio para demarcar e esse princípio não existe, por que demarcar? Perde o sentido. A sociedade vai definir isso.
O [conceito do] direito originário não traz segurança jurídica, esse marco, com procedimentos transparentes. Se tem a participação da sociedade, teremos bons resultados. Não vai deixar de demarcar, pode até demarcar mais.
Não seria, então, discutir antes o conceito de direito originário e depois definir qual o melhor marco temporal?
Não, porque a partir do momento que se institui o marco, define-se que o direito originário tá limitado àquele marco. A segurança [jurídica] não é o conceito do direito originário, é o marco.
RAIO-X – João Henrique Hummel, 61
Agrônomo e consultor, foi responsável pela fundação do IPA (Instituto Pensar Agro). Também dirigiu a FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária) por 11 anos. Atualmente, é diretor-executivo da Action Relações Governamentais (Folha de S.Paulo, 1/6/23)