Mudança de rota está associada à limitação tecnológica e falta de infraestrutura no interior do País, onde ficam as minas da empresa.
A Vale está mudando a estratégia para o futuro dos caminhões e trens que levam seu minério. A tão propalada eletrificação do transporte de carga vai ficar em segundo plano nos próximos anos, dando lugar a veículos movidos a combustíveis renováveis, como etanol,diesel verde (HVO) e amônia verde, apurou o Estadão/Broadcast.
Apesar da mudança, a meta de redução das emissões de carbono está mantida. Nos escopos 1 e 2, que incluem respectivamente transporte e energia da operação, o corte planejado nas emissões é de 33% até 2030 e de zero até 2050. Trata-se, portanto, de uma mudança de rota tecnológica, caminho dessa descarbonização para tornar o processo mais viável estrutural e financeiramente.
A eletrificação não será deixada de lado, mas tende a assumir papel auxiliar ou ficar restrita ao transporte de algumas minas no Brasil e no mundo, em caminhões com cargas menores, disse ao Estadão/Broadcast a diretora de Energia e Descarbonização, Ludmila Nascimento. Por trás da mudança, estão as limitações tecnológicas da eletrificação e a falta de infraestrutura associada no interior do País. Os combustíveis renováveis, além de maior eficiência energética, alcançam mais facilmente os rincões onde a Vale atua.
O último anúncio da companhia vai nessa linha. A Vale encomendou mais três locomotivas elétricas da Wabtec Corporation para uso na Estrada de Ferro Carajás (EFC), onde trafega o maior trem de minério de ferro do mundo, com 330 vagões e 45 mil toneladas do produto. As locomotivas elétricas não vão substituir as atuais, movidas a diesel, mas sim os chamados “helper dinâmicos”, equipamentos que também consomem diesel para auxiliar em trechos de aclive. Nesse caso, a recarga advém também do próprio processo de freio da composição.
Ao combinar diesel e eletricidade, os trens assumem um funcionamento híbrido, que deve anteceder o emprego de motores a amônia. “Trabalhamos com diversas soluções ao mesmo tempo, mas a amônia é a maior aposta para as locomotivas”, disse Ludimila. O desenvolvimento do motor a amônia é, inclusive, tema das conversas da Vale com empresas como a própria Wabtec, que vai começar estudos em laboratório.
O movimento foi alvo da explanação do gerente de desenvolvimento de tecnologia da Vale, Alexandre Alves, em evento sobre energia organizado em junho pelo consulado do Reino Unido, no Rio de Janeiro.
“Se temos uma certeza na Vale hoje, é que a solução baseada em eletrificação em baterias não vai passar de caminhões de 100 toneladas. É muito improvável que vá alcançar (caminhões com) 320, 400 toneladas de payload (carga útil)”, disse Alves da Silva, a uma plateia de executivos reunida no Museu do Amanhã.
A Vale criou o programa de eletrificação PowerShift há cinco anos, mas só começou a introduzir veículos elétricos em sua frota no ano passado, com caminhões de 72 toneladas adaptados em operações no Brasil e na Indonésia. O mesmo aconteceu com duas locomotivas de pátio de manobra 100% elétricas, que operam na Estrada de Ferro Vitória-Minas, em Vitória (ES), e na Estrada de Ferro Carajás, em São Luís (MA). Segundo Alves da Silva, no entanto, as baterias não darão voos mais altos no transporte pesado da Vale.
“No início, acreditávamos que a eletrificação resolveria nosso problema de mobilidade em caminhões de mineração e ferrovias. Tudo que tentamos nessa direção deu errado. O que entendíamos há cinco anos como uma bala de prata, hoje não passa de uma bala de latão. Olhávamos para isso de maneira muito inocente”, continuou.
Ao fim do evento, questionado pelo Estadão/Broadcast sobre qual seria o futuro do transporte da Vale, o executivo foi direto: etanol para caminhões e amônia verde para os trens. O emprego desses insumos, reconheceu, exige adaptações nos motores, mas contam com facilidades como oferta e logística que se aproximam daquela dos combustíveis fósseis, indesejados.
Limites da eletrificação
Sobre as dificuldades do processo de eletrificação, o gerente da Vale citou desde aspectos básicos, como aplicação das baterias de veículos leves para pesados e eficiência, até logísticos. Nesse último ponto, disse, seria preciso adaptar a lógica operacional para recarregar baterias diariamente. E a isso se soma a falta de infraestrutura.
“Nossas minas, assim como as nossas ferrovias, estão posicionadas e muito mal supridas de energia elétrica. Se colocamos na conta os carregadores e tudo quanto seria necessário à substituição do diesel, chegamos a números que não param de pé”, disse.
Alves da Silva assinalou, ainda, a resistência dos fornecedores em aderirem à transição porque o negócio de modelos a combustíveis fósseis têm forte receita pós-venda, ligada à manutenção. “Romper com isso (motor a combustão) para uma plataforma padrão elétrica, onde o número de partes rotativas cai muito e o ‘aftersale’ vai minguar, traz uma reação de fornecedores”.
Líder do centro da mobilidade do futuro da McKinsey, Felipe Fava diz que é difícil viabilizar a eletrificação de caminhões acima de 22 toneladas de carga sobre cavalo, o que pode chegar a 40 toneladas no total. Trata-se de peso bem inferior ao dos veículos mais leves da Vale.
O especialista não comenta especificamente o caso da mineradora, mas afirma que a quantidade de baterias é proporcional ao peso da carga, o que eleva o custo do veículo em si e também da operação, já que exige maior tempo de carregamento.
“Uma bateria de um carro elétrico pesa 500 quilos, o que sobe para 2 toneladas em um caminhão médio. Em um caminhão pesado, a depender da distância e do peso de carga, as baterias podem chegar a 5 toneladas”, diz.
Por mais que se use carregamento rápido, diz Fava, um caminhão elétrico desse porte requer de seis a oito horas de recarga, o que dificulta operações contínuas (24h/7 dias), caso das minas da Vale. “Uma alternativa é fazer o ‘battery swapping’ (troca da bateria para recarga), mas fazer a substituição de uma bateria dessas (grandes) também não é tão simples”, disse.
O coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da UFRJ (Gesel/UFRJ), Nivalde de Castro, afirma que a correlação da quantidade de baterias com o peso do veículo inviabiliza as antigas aspirações da Vale. Ele diz, ainda, que a falta de infraestrutura é um limitador fatal, sobretudo no caso das ferrovias, que teriam de ser amplamente eletrificadas a alto custo de investimento.
Alternativas
Segundo Castro, uma das rotas de descarbonização do transporte mais promissora é a do hidrogênio verde. “Há um cenário de transição que é testar óleo diesel com uma porcentagem de hidrogênio, entre 5% e 15%, o que reduz significativamente as emissões (de carbono). Nessa linha, a amônia, que pode ser considerada um derivado do hidrogênio, vai bem também, porque é mais fácil para transportar e armazenar”, diz ele sobre a solução futura da Vale para trens.
Sobre o etanol para caminhões pesados, ambos os especialistas dizem ser opção viável, mas que depende de adaptações no motor. “É viável, mas é uma alteração de projeto original, o que implica em alguma perda de eficiência”, diz Fava. Segundo o especialista da Mckinsey, a grande vantagem fica por conta da infraestrutura de distribuição já existente.
Segundo Alves da Silva, há pelo menos três tecnologias para transitar do diesel ao etanol: uma em que o diesel se mantém com um determinado percentual da mistura (pilotagem); outro em que o diesel é 100% substituído pelo etanol (combustão quente); e uma última em que diesel e etanol entram no mesmo motor, mas de forma apartada, a depender da escolha do motorista. Essa última opção é a mais cotada hoje na Vale, porque abre espaço para o uso de diesel verde (HVO). “A flexibilidade do ponto de vista do insumo é sempre mais desejável”, resume o gerente, que foi por anos pesquisador e professor universitário.
Uma alternativa factível, diz Fava, da Mckinsey, seria o biogás, o que exigiria a substituição da frota atual por veículos próprios para gás. Alves da Silva afastou a possibilidade porque o emprego do biogás resultaria necessariamente na emissão de metano para a atmosfera, gás de efeito estufa considerado 86 vezes mais nocivo que o gás carbônico.
“Entre 2% e 5% do metano do gás utilizado na combustão no motor sai pelo cano de descarga dos veículos, e isso invalida o biogás como opção ambientalmente correta para nós”, disse o gerente da Vale (Estadão, 22/7/23)