Divergências colocam em risco aprovação na semana de pautas cruciais para a equipe econômica.
Em uma semana decisiva para a agenda econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), três propostas prioritárias enfrentam obstáculos para avançar na Câmara dos Deputados em meio a resistências de mérito e também à cobrança pela liberação de emendas parlamentares.
Se antes a expectativa era enfileirar as votações do projeto de lei que trata do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), do novo arcabouço fiscal e da PEC (proposta de emenda à Constituição) da reforma tributária, agora lideranças influentes da Casa já avaliam reservadamente que será difícil levar adiante qualquer votação nesta semana.
A promessa de um esforço concentrado partiu do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que tem tido um bom diálogo com o ministro Fernando Haddad (Fazenda) e também se coloca como uma espécie de fiador da reforma tributária, pois deseja imprimir essa marca à sua gestão no comando da Casa.
A previsão era começar já com a votação do projeto do Carf na segunda-feira (3). A proposta tramita em regime de urgência constitucional e, por isso, tem preferência na pauta da Câmara. Só depois de sua votação é que os deputados podem apreciar o novo arcabouço fiscal —o que também ocorreria na segunda.
A falta de acordo em torno do texto, no entanto, já adiou a votação do Carf por dois dias. O relator, deputado Beto Pereira (PSDB-MS), apresentou seu relatório na segunda à noite, sem tempo hábil para que fosse analisado pelos demais parlamentares. Já na terça (4), ele reconheceu que dificilmente o texto seria votado diante da necessidade de ajustes.
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“O processo ainda está em maturação. As pessoas precisam conhecer o texto, sugerir. Tem uma sugestão ou outra que se faz necessário”, afirmou Pereira.
Por ser uma PEC (proposta de emenda à Constituição), a reforma tributária não é alcançada pela regra da urgência que trava o andamento de outras propostas. Do ponto de vista técnico, Lira pode mudar seu cronograma e inverter as votações, antecipando a reforma tributária.
Do ponto de vista político, porém, essa inversão é considerada delicada. Ainda há impasses envolvendo trechos do texto do relator, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), que dificultam traçar agora um cenário de aprovação até esta sexta-feira (7), como anunciou e ainda quer Lira.
No governo e no Congresso, há uma avaliação de que a concentração de tantas pautas estratégicas em uma mesma semana acabou tumultuando as negociações. Dentro do Executivo, houve quem alertasse para o perigo de o esforço concentrado acabar gerando confusão, expondo o governo em diferentes frentes de articulação ao mesmo tempo.
Um retrato desse ambiente tumultuado são as próprias reuniões dos partidos. Um bloco que representa 142 parlamentares de partidos como MDB, Republicanos e PSD se reuniu para discutir as propostas de reforma tributária e do Carf. A reunião contou com a presença dos respectivos relatores e durou cerca de quatro horas, mas até o começo da noite ainda não havia tido nenhum desfecho objetivo sobre apoiar ou não as propostas.
Um dos principais desafios da reforma tributária é reunir apoio de governadores resistentes hoje ao conselho federativo a ser criado pela reforma para centralizar a arrecadação do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), que vai substituir o ICMS estadual e o ISS municipal.
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), é o principal expoente da resistência à ideia e defende um mecanismo de câmara de compensação, segundo o qual os estados continuam responsáveis pela arrecadação, mas depois efetuariam o repasse das parcelas que cabem a outros estados.
O relator da reforma tributária busca construir agora um meio-termo entre os dois modelos, na tentativa de atrair o apoio de São Paulo. De acordo com pessoas envolvidas nas discussões, haveria a retenção do tributo recolhido ao longo do processo de produção dentro dos municípios e estados (como na aquisição de insumos), até que haja a venda do bem ou serviço ao consumidor final.
Se todas as operações ocorrerem entre municípios de um mesmo estado, a câmara de compensação executaria a distribuição dos recursos dentro do próprio estado.
Caso haja operações interestaduais, o processo é um pouco mais complexo. Vários especialistas têm apontado que o modelo de câmara de compensação cria um problema para os contribuintes cobrarem seus créditos tributários para abater do valor a pagar em impostos.
Nesse caso, a proposta intermediária prevê a retenção de uma parte do valor do tributo junto ao conselho federativo. Essa parcela funcionaria como uma espécie de garantia para os contribuintes resgatarem seus créditos, mesmo que o recolhimento do imposto tenha sido feito em outro estado.
Além da pressão dos governadores, o relator tem recebido reclamações de setores empresariais. Agronegócio e serviços se posicionaram contra o texto.
Mesmo após o relator apresentar uma lista de segmentos contemplados por uma alíquota reduzida, os empresários dessas atividades dizem que não apoiam o texto sem que haja modificações. A reclamação das entidades é que a proposta transfere a carga tributária da indústria e do setor financeiro para o agro e os serviços.
Representantes do agronegócio tiveram uma reunião na última segunda-feira (3) com Ribeiro para pedir mudanças. “A gente entende que o relatório evoluiu em alguns pontos, mas não o suficiente para ter o apoio do setor”, afirma Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da CNA (Confederação Nacional da Agricultura).
Ribeiro incluiu no texto um dispositivo que autoriza produtores rurais com receita de até R$ 2 milhões ao ano optarem por não contribuir ao IBS e à CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços, que vai substituir PIS e Cofins), em um aceno que, segundo o relator, contempla 98,5% dos produtores rurais pessoas físicas no país.
A CNA, porém, quer que esse limite de renda seja ampliado para até R$ 4,8 milhões. O agro também defende mais clareza no texto sobre a não-cumulatividade da tributação.
Outro pleito é que a alíquota reduzida para parte dos produtos agropecuários, que na proposta é de 50% da cobrança integral, seja ainda menor, equivalente a 20%, e valha para todo o setor. “De 35 países com IVA [Imposto sobre Valor Agregado, modelo usado pela proposta], 8 têm isenção para o agro –como Canadá, México e Reino Unido”, afirma Conchon.
O texto do relator prevê imposto pela metade para produtos agropecuários, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura, além de bens incluídos na cesta básica. Tal lista ainda deixaria de fora uma série de produtos, defende a CNA.
O presidente da FPA (Frente Parlamentar da Agropecuária), deputado Pedro Lupion (PP-PR), diz que tem conversado constantemente com Lira e o relator da proposta em busca de ajustes no texto, embora considere o adiamento da votação como um cenário ideal.
“Nunca vamos aceitar aumento de tributação sobre o agro, óbvio […]. Não aceitamos reoneração da cesta básica”, afirmou Lupion em reunião da FPE (Frente Parlamentar do Empreendedorismo), que recebeu o secretário de Fazenda de São Paulo, Samuel Kinoshita, e o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, dois outros críticos à proposta.
Lupion chamou o cashback, mecanismo de devolução de impostos para pessoas de baixa renda, de “utopia completa”. “[É] a dona de casa pagando mais caro sob a promessa do governo de devolver esse dinheiro, algo que sabemos que nunca vai acontecer”, afirmou.
O setor de serviços também tem sido enfático contra o texto e alega não ter tido interlocução com Aguinaldo Ribeiro. “É uma oportunidade perdida se for aprovado isso”, diz Luigi Nese, presidente da CNS (Confederação Nacional dos Serviços).
Um dos principais argumentos do setor é o risco de aumento da carga tributária. No entanto, o governo, o relator e especialistas favoráveis à reforma afirmam que boa parte das empresas de serviços está no Simples Nacional —que não será alterado pela PEC. Outros estão nos segmentos de saúde, educação e transporte coletivo, que foram contemplados pela alíquota reduzida de 50% da cobrança integral.
Mesmo os serviços que são impactados pelo novo imposto serão, por outro lado, beneficiados pela possibilidade de abater créditos que hoje não podem ser resgatados. Tributos recolhidos na conta de luz, por exemplo, poderão ser usados pelas companhias para reduzir o valor a ser recolhido sobre suas vendas.
O relator chegou a prever em seu parecer que o governo precisa entregar uma proposta de reforma do Imposto de Renda e que a arrecadação com essas mudanças “poderá” abater a folha de pagamento. Mas a proposta não agradou à CNS.
“Você acha que é sensato? A gente vai aumentar Imposto de Renda e com isso desonerar a folha de pagamento? É irracional”, afirma Nese.
Antes, os representantes da área defendiam a desoneração da folha com base na recriação de um imposto nos moldes da antiga CPMF –ideia defendida em diversas ocasiões pelo então ministro Paulo Guedes (Economia) e sua equipe, mas que foi alvo de resistência até do então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Diante das dificuldades da ideia, a CNS agora tem esperança de articular e aprovar uma modificação no texto para que o IVA tenha uma alíquota ainda maior para que os recursos sejam destinados à desoneração da folha (Folha, 5/7/23)