Por outro lado, projeções indicam que frear aquecimento global pode levar a lucros no longo prazo.
“A era da ebulição global chegou.” A declaração, feita nos últimos dias pelo secretário-geral das Nações Unidas, o português António Guterres, talvez soe exagerada para alguns. Mas para quem acompanhou a onda de calor que tomou o hemisfério Norte neste mês, ela não tem nada de estapafúrdia.
A primeira semana de julho foi a mais quente desde 1979, com a temperatura média global batendo recordes consecutivos. Mais recentemente, cientistas de diversas entidades, incluindo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), anunciaram que o mês caminha para ser o mais quente já registrado, em parte consequência da intensificação do lançamento de gases do efeito estufa na atmosfera pelo homem.
Na Ásia, termômetros na China registraram marcas acima dos 50°C, e regiões da Coreia do Sul e do Japão, assim como do norte da Índia, foram atingidas por grandes inundações.
Nos Estados Unidos, rodovias se partiram ao meio, e operários da construção civil passaram a misturar pedras de gelo a massas de concreto para se certificar de que as vigas que fixavam não se rachariam ao secar, dando mostras de que materiais como ferro, aço e todo tipo de adesivo a base de polímeros que sustentam a arquitetura moderna não suportarão a alta das temperaturas. Em Phoenix, capital do Arizona, hospitais acolheram uma multidão de pacientes que se queimaram gravemente após caírem no asfalto.
O sul da Europa, na mesma toada, enfrenta algumas das temperaturas mais altas de sua história recente. Na Grécia, incêndios florestais levaram ao deslocamento de mais de 20 mil turistas, e, na Sicília, canos subterrâneos derreteram devido ao calor no asfalto, deixando mais de 500 mil pessoas sem energia. A justificativa da distribuidora foi de que operava em “condições excepcionais de emergência climática”.
As cenas, que mais parecem de filmes apocalípticos, convivem com discussões de curto prazo, como a repercussão dos desastres sobre o turismo, setor que responde por parte considerável do PIB de vários países europeus, ou o impacto sobre a produtividade dos trabalhadores. Lado a lado, elas ilustram não só a amplitude das consequências da crise do clima como os perigos que ela representa para a economia.
Estudos recentes buscaram traduzir esse impacto em números. Publicado em 2021 pela OMM, o “Atlas da Mortalidade e de Perdas Econômicas Causadas por Fenômenos Climáticos e Hídricos Extremos” estima que os mais de 11 mil desastres naturais associados ao clima entre 1970 e 2019 tenham gerado custos de US$ 3,64 trilhões (R$ 17,22 trilhões na cotação atual), com os valores aumentando década a década.
Já a firma de auditoria Deloitte, uma das maiores do mundo, projeta que, caso os padrões de emissão de carbono atuais sejam mantidos até 2070, as perdas globais totalizarão US$ 178 trilhões (R$ 841 trilhões).
Ainda assim, como a crise vem acompanhada de um efeito cascata, é difícil ter um panorama claro do que vem à frente, diz Fernanda Feil, professora de economia da UFF (Universidade Federal Fluminense). “Não consigo ver um aspecto da vida que não será prejudicado. Desde aquele que tem uma venda até grandes produtores”, diz ela, destacando que algumas das áreas mais atingidas serão agricultura e saúde pública.
Para o americano Bob Keefe, autor do livro “Climatenomics”, sem edição no Brasil, a dificuldade de calcular a dimensão dos efeitos do clima sobre a economia tem a ver com o distanciamento que o mercado mantinha do tema até pelo menos o início do milênio. Durante muitos anos, diz ele, as mudanças climáticas foram vistas como um problema ambiental, de justiça social ou de saúde, mas não econômico.
“É claro que elas ainda são tudo isso e que essas pautas são fundamentais. Mas não são causas com as quais o mercado se relaciona. A linguagem que ele entende diz respeito a oportunidades de se gerar riqueza, custos de não agir, além dos sinais que os governos dão ao estabelecer políticas públicas.”
Keefe defende que, mais do que a percepção dos custos da crise, são as chances de ganhar dinheiro com a transição para uma economia sustentável que podem representar a chave para uma revolução na área.
“Toda empresa quer baixar seus custos, incluindo os de energia. E hoje, sem dúvida, a energia mais barata que você consegue encontrar em escala, ao menos nos EUA, é a solar ou a eólica”, afirma ele. “Estamos falando de um mercado global de US$ 21 trilhões, segundo algumas estimativas. As empresas seriam tolas e estariam fazendo um desserviço a seus acionistas se não pensassem em como entrar nele.”
As projeções da Deloitte corroboram o raciocínio de Keefe. No mesmo relatório em que a empresa diz que manter as taxas de emissão de carbono nos níveis atuais implica perdas da ordem de trilhões, ela aponta que reduzi-las de modo a cumprir o Acordo de Paris, zerando as emissões até 2050 e limitando o aquecimento global a até 1,5°C, pode representar lucros de US$ 43 trilhões (R$ 203 trilhões).
Relatório deste ano do painel científico do clima da ONU, o IPCC na sigla em inglês, indica, no entanto, que para essa meta ser alcançada as emissões dos gases do efeito estufa precisariam ser cortadas em ao menos 48% até 2030, o que demandaria mobilização muito maior de políticos e da sociedade civil do que o visto até hoje —ainda que o mesmo documento ressalve que já temos a tecnologia necessária para tal.
Otimista, Keefe diz acreditar que é justamente o interesse do setor privado que pode fazer com que o tempo perdido seja recuperado quando se trata de combater a crise do clima. “Política pública importa, mas quando o mercado de inovação se engaja numa causa, a história muda. E ele agora está interessado.”
O americano afirma que sua esperança vem em parte da experiência cobrindo o setor de tecnologia como jornalista, área em que atuou por quase 25 anos. Ele lembra que ele e outros colegas não levaram Steve Jobs a sério quando o então CEO da Apple disse que qualquer um poderia carregar dezenas de músicas no bolso, uma referência àquilo que viria a ser o iPod. “Ninguém jamais previu essa velocidade de inovação. E vamos ver isso escalonar de modo antes impensável quando se fala de energia limpa.”
Já Feil, da UFF, afirma que evitar uma catástrofe climática demandaria disposição muito maior de governos para investir em mudanças estruturais, além de alterações no tabuleiro geopolítico.
“Não conseguiremos fazer a transição para uma economia sustentável dentro da lógica do capitalismo que transforma tudo em ativo financeiro, que faz da natureza uma commodity. E não adianta só um país fazer isso. Por isso a questão da redistribuição de riqueza é tão importante”, diz ela. “Seguimos querendo resolver o problema dentro do sistema que o causou. Nossas formas de fazer política, economia, precisam mudar. Até lá, tudo será pouco e tarde demais. Não há respostas individuais para problemas coletivos.” (Folha, 30/7/23)