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Captação de recurso é gargalo na transição energética do Brasil

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Segundo Ricardo Mussa, investidor estrangeiro quer energia renovável do país, mas teme vaivém da legislação local.

A Raízen, joint venture entre Shell e Cosan (conglomerado do empresário Rubens Ometto), está entre os líderes nacionais na geração de energia renovável a base de cana-de-açúcar.

Produz bioeletricidade, biogás, biometano e etanol, inclusive etanol de segunda geração —o chamado E2G, que emite 30% menos gases poluentes que o etanol normal e 80% menos que o combustível fóssil, além de ser matéria-prima para o combustível de aviação renovável (SAF) e o hidrogênio verde.

Mesmo apresentando todas essas cartas na mesa de negociação, o CEO da Raízen, Ricardo Mussa, afirma encontrar resistência do investidor estrangeiro a colocar dinheiro no Brasil para impulsioná-lo na corrida global pelo desenvolvimento de novos produtos sustentáveis.

“Se você me perguntar qual é o meu maior gargalo, vou dizer que é acelerar a captação de recursos para crescer mais rápido”, afirma Mussa.

“Quando falo com investidor internacional, gasto mais tempo explicando o que é o Brasil do que a minha tese de negócio. Ninguém tem dúvidas sobre o potencial de negócios, mas tem muitas dúvidas sobre Brasil.”

Segundo o executivo, permanece o temor sobre a instabilidade regulatória na esfera pública e jurídica nacional.

“Há dúvida sobre se vai ter respeito a contrato, se as políticas públicas —como a política de preços da Petrobras— vão mudar, se vai ter segurança jurídica para o investimento de longo prazo”, afirma.

“A percepção de instabilidade do investidor estrangeiro é grande. Mas eles têm recursos, e a gente precisa deles. Nós não temos os recursos.”

Mussa também alerta que o governo vai precisar elaborar uma política pública mais sofisticada e saber selecionar os subsídios, porque será preciso apoio diplomático, institucional e financeiro para que o país possa cruzar com sucesso a nova fronteira tecnológica que busca combater as mudanças climáticas.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que o executivo concedeu à Folha.

Qual a visão da empresa sobre o potencial da transição energética para o Brasil e para ela mesma, uma vez que o momento representa opções de novos negócios?

Há os dois lados. Temos a responsabilidade e a obrigação de fazer algo diferente e, ao mesmo tempo, espaço na criação de valor para a empresa —e são poucas empresas que têm a nossa posição e podem falar que já estão ajudando na transição energética. Já vi empresa grande do setor de óleo e gás anunciar como meta para 2050 chegar aonde a Raízen está.

Hoje, um terço da energia da cana está no caldo. Você extrai e faz etanol ou açúcar. O segundo terço está no bagaço, que a gente usa para fazer energia elétrica, apesar de não ser o melhor uso. Solar e eólica são melhores. A terceira parte da energia está na folha, que a gente joga no campo.

Veio uma tecnologia nova chamada etanol de segunda geração. Você pega o bagaço, que é um resíduo, joga uma enzima e consegue o etanol de segunda geração. Essa tecnologia a gente domina.

Quando eu apresento lá fora, o estrangeiro olha para mim e faz cara de ‘não é possível que esse brazuca conseguiu’. O pessoal é cético. Chega a ser engraçado.

Na minha última reunião com investidores, eu fiz uma live na planta como fazem naqueles filmes de sequestrado. Segurei o jornal do dia e mostrei: estamos na nossa planta, ela existe e isso aqui é bagaço da cana. Bagaço não compete com alimento. O etanol de segunda geração tem um prêmio muito alto por isso.

São quantas plantas de etanol de segunda geração?

Temos uma e estamos indo para a segunda. Contar essa história é interessante.

A demanda era muito alta e decidimos testar o apetite: vender o produto antes, com contrato de longo prazo, volume e preço mínimo garantido. Antes de construir nossas plantas, 80% do produto já está vendido. Já vendi nove plantas. Hoje meu desafio é construir.

Quanto custa cada planta?

Cerca de R$ 1,3 bilhão. O investimento é alto. Tenho apetite hoje para mais de 45 plantas. Não falta demanda. Hoje só a gente tem a tecnologia, e estamos vendo como disponibilizar.

Vivemos uma conjunção única de fatores. A gente tem certeza de que está na hora certa, com a empresa certa e no país certo. Por isso, quando faço o contexto da transição energética, ele é muito focado na oportunidade para o Brasil.

O Brasil é especialista em perder janelas de oportunidade. Já ocorreu em outros momentos. O que o país precisa fazer para garantir esta da transição energética?

Precisa ter estabilidade regulatória. Quando falo com investidor internacional, gasto mais tempo explicando o que é o Brasil do que a minha tese de negócio. Ninguém tem dúvidas sobre o potencial de negócios, mas tem muitas dúvidas sobre Brasil.

Mas quais as dúvidas?

Há dúvida sobre se vai ter respeito a contrato, se as políticas públicas —como a política de preços da Petrobras— vão mudar, se vai ter segurança jurídica para o investimento de longo prazo.

Estão discutindo, por exemplo, se vão reestatizar a Eletrobras. Nós, brasileiros, ouvimos isso e, ao final do dia, ficamos na dúvida, mas sem desconforto. No gringo, desperta receio. Essa percepção de instabilidade é maior para quem está de fora.

Vou dar o exemplo da nossa empresa. A área de floresta sob gestão da Raízen é maior que a de muitos países. Mas o investidor chega para mim e fala que o receio dele em investir no Brasil ou na Raízen é o desmatamento na Amazônia.

O cara não sabe que estou a 2.000 quilômetros da Amazônia e que 27% da minha área é reserva legal protegida ou mata ciliar. Eu gasto dez horas da minha conversa com ele explicando o básico.

Imagine esse cara olhando para o Brasil, vendo a mudança de um governo de direita para outro de esquerda e pensando no que pode mudar. A percepção de instabilidade do investidor estrangeiro é grande. Mas eles têm recursos, e a gente precisa deles. Nós não temos os recursos.

O Brasil precisa mostrar que tem um arcabouço para receber mais investimento. Não estou falando de tecnologia, porque tecnologia a gente tem aqui. Falo de recursos. Se você me perguntar qual é o meu maior gargalo, vou dizer que é acelerar a captação de recursos para crescer mais rápido.

Precisa lembrar também que outros países estão com movimentos próprios. Os Estados Unidos têm o Inflation Reduction Act [legislação americana para incentivo à economia verde]. Essa lei permite que o governo americano direcione bilhões para atrair investimentos na produção de energia local.

O exemplo é o SAF, o combustível de aviação renovável. O governo americano está investindo para atrair produtores, mas os Estados Unidos não são o melhor lugar do mundo para a produção. Faz muito mais sentido no Brasil.

Tem empresa brasileira indo para lá…

A gente mesmo está indo lá e olhando. O que eu olho? Será que poderia pegar a minha tecnologia de etanol de segunda geração e, com fornecimento de produtores de cana-de-açúcar locais, ter acesso a esse recurso barato [do governo americano] para colocar uma planta lá?

O Brasil é um lugar melhor, mas, depois que colocarem 10, 20 plantas de SAF lá vai ficar difícil a gente competir.

Para aproveitar a janela de oportunidade, temos de criar as condições para trazer o investimento para cá.

O governo brasileiro até usou como exemplo o SAF para dizer que certas tecnologias vão demandar subsídio. Na sua avaliação, então, esse é um exemplo de segmento que precisa de subsídio na transição energética?

Precisa. São poucas coisas que precisam, mas essa é uma. Se você olhar a nossa cadeia de produtos renováveis, vai ver que ela compete com o resto do mundo sem nenhum subsídio. Mas o Brasil não domina a tecnologia do SAF. Tem quatro ou cinco empresas que desenvolveram. Posso ir lá e comprar, porque o Brasil tem o mais difícil, a biomassa de um resíduo, o bagaço.

O sr. podia dar exemplo prático do que seria uma boa política para desenvolver SAF no Brasil hoje?

O SAF precisa ser focado no mercado de exportação. Tem duas tecnologias em que o Brasil tem vantagem. Uma delas é o alcohol-to-jet. Nessa tecnologia, cada 1,7 litro de etanol produz um litro de SAF. Então, o melhor lugar para colocar uma planta é na origem do etanol. Assim, em vez de levar 1,7 litro de etanol para Europa, você transforma ele aqui em um litro de SAF. Economiza na logística, na energia, na emissão.

Onde tem etanol? Ribeirão Preto. Tem um pipeline [duto de transporte de etanol] ligando Ribeirão a Paulínia, que é um hub [local que agrega produtos e serviços de um mesmo setor]. Não tem melhor lugar no mundo para colocar uma planta de SAF.

Segundo ponto: pensa no mundo sendo uma coisa só. Não seria melhor, em vez de levar SAF para a França, para abastecer 5% do tanque de uma avião lá, colocar 100% de SAF no avião no Brasil? Não é besteira ficar poluindo o mundo transportando combustível de um país para o outro?

A proposta é abastecer os aviões aqui no Brasil?

Pode ser. Mas aí precisa criar um mecanismo para facilitar o cumprimento das metas no ponto mais barato. É isso que interessa ao planeta: fazer de forma mais barata, rápida e menos poluente. Imagine levar SAF para todos os aeroportos do mundo para colocar 5% em cada avião. Isso é uma loucura.

Mas, para algo assim ocorrer, é preciso ter uma conjunção. O setor privado precisa entender o tamanho da oportunidade. O BNDES precisa saber em quais linhas de negócio faz sentido ele ajudar. Tem também a parte internacional de negociação com outros países para o Brasil garantir que vai cumprir o fornecimento no longo prazo.

Vamos ter de pensar também uma estratégia para o hidrogênio verde. O etanol é excelente fonte.

Mas a responsabilidade não é só do governo. O setor privado tem o papel de mostrar o tamanho das oportunidades de forma prática. Posso dar outro exemplo?

Claro

Uma das grandes fontes de emissões no mundo hoje é o fertilizante para agricultura. O Brasil é um dos maiores importadores do mundo. Para fazer fertilizantes, você precisa de gás. O Brasil tem muito potencial de biogás.

Vou pegar as emissões da Raízen: 30% vêm de fertilizantes. Tenho também um monte de biogás na Raízen. Eu fiz as contas. A Raízen tem potencial para construir de 20 a 25 plantas de biogás.

Com 75 plantas, todas conectadas à mesma rede, eu consigo abastecer uma superplanta de fertilizante 100% renovável no Brasil. Putz, mas quem vai fazer o investimento nos pipelines para conectar tudo isso? Aí a conta não fecha.

Se o governo não vier para ajudar no financiamento de longo prazo dos pipelines, não tem como fazer. Se ele fizer, vai incentivar a produção de biogás, atrair produtor de fertilizante para Brasil, reduzir a dependência do país e também as emissões no mundo.

Isso é uma política de ganha, ganha, ganha.

RAIO-X

Ricardo Mussa, 48 – Formado em engenharia de produção pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), atuou em multinacionais como Unilever e Danone antes de, em 2007, ingressar no grupo Cosan. Foi um dos fundadores e, por cinco anos, CEO da Radar, empresa de investimento em terras agrícolas. Em 2014, tornou-se CEO da Moove, área de negócios com lubrificantes. Em 2017, assumiu a vice-presidência executiva de Logística, Distribuição & Trading na Raízen, chegando em 2020 ao comando da empresa (Folha, 19/2/24)

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