Por José Tadeu Arantes
Quatro décadas transcorridas desde a redemocratização do país, a extrema desigualdade no meio rural, que é um traço estrutural da formação social brasileira e uma das principais causas de seus desequilíbrios e conflitos, pouco ou quase nada mudou. Essa desigualdade não se verifica apenas em termos de renda, mas também de propriedade e posse da terra.
Esta é a afirmação central do artigo Land Inequality in Brazil: Conflicts and Violence in the Countryside Desigualdade de Terras no Brasil: Conflitos e Violência no Campo), publicado pelos pesquisadores da Universidade Federal do ABC (UFABC) Artur Zimerman, Kevin Campos Correia e Marina Pereira Silva. O texto compõe um dos capítulos do livro Agriculture, Environment and Development: International Perspectives on Water, Land and Politics (Springer, 2022), que apresenta resultados de pesquisas realizadas no Brasil, na Índia e Europa.
“Se o país é atualmente um dos maiores produtores e exportadores de commodities agrícolas, essa produção, provavelmente, é diferente daquela do antigo proprietário de terras ou latifundiário em termos de escala, mas semelhante em princípios, mantém a desigualdade rural tão presente hoje quanto foi no passado”, afirma o artigo.
O texto reconhece os avanços quantitativos realizados pelos governos Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Lula (2003-2010) quanto à distribuição de terras, comparativamente a seus antecessores e sucessores. Mas sublinha que o tipo de reforma agrária realizada durante esses períodos foi claramente insuficiente, privilegiando o agronegócio em detrimento da agricultura familiar.
“A concentração da propriedade ou da posse da terra é enorme em toda a América Latina – particularmente no Brasil. Apenas 1% da população concentra a metade de toda a área já apropriada. E a modernização protagonizada pelo agronegócio, que levou alta tecnologia ao campo, não apenas excluiu a população rural de seus benefícios como diminuiu a oferta de empregos no trabalho agrícola. Conflitos com a segurança particular dos grandes proprietários ou com a polícia já provocaram, desde 1985 até hoje, 1.836 mortes no campo brasileiro – 564 delas no sul-sudeste do Pará”, diz Zimerman, primeiro autor do artigo, que recebeu apoio da FAPESP no âmbito do projeto “Por que os conflitos agrários se tornam violentos na América Latina (AL)? Compreendendo a crise alimentar e como aliviar os impactos da violência agrária”, desenvolvido na Universidade de Londres (Reino Unido).
O pesquisador pondera que a diminuição do contingente de trabalhadores empregados em atividades agropecuárias não deve ser associada automaticamente ao êxodo rural. Muitas pessoas foram trabalhar nas cidades, mas continuam morando no campo.
“A definição de rural e urbano adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] baseia-se em parâmetros definidos na época do Estado Novo, entre 1937 e 1945, que já não correspondem à realidade de hoje. O IBGE é uma instituição respeitável, mas, no tocante a este tema, seus parâmetros, que são seguidos por outros institutos de pesquisa do continente, estão totalmente desatualizados”, sustenta Zimerman.
E acrescenta: “Critérios mais modernos, propostos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE] e pelo Banco Mundial, e adotados por autores conceituados como José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay e Ivair Gomes, dentre outros, nos obrigam a redefinir o tamanho da população rural, que tem sido claramente subestimado. Como detalhamos em nosso artigo, para definir zonas rural e urbana os organismos internacionais levam em consideração os seguintes parâmetros: densidade populacional menor ou maior do que 150 habitantes por quilômetro quadrado; infraestrutura; e distância a uma cidade com mais de 100 mil pessoas. Quando adotamos esses critérios, o tamanho da população rural da América Latina praticamente dobra: de 24% para 46%”.
O pesquisador argumenta que esse enorme contingente populacional está dramaticamente desprovido de uma representação política formal, que poderia atuar na defesa de seus interesses, dirimindo conflitos. “Enquanto os pequenos proprietários e trabalhadores assalariados do campo possuem representação irrisória, a bancada ruralista, que legisla em prol do agronegócio, vai compor uma bancada com cerca de 280 parlamentares na nova legislatura”, enfatiza Zimerman.
E seu artigo afirma que “a desigualdade fundiária é o vilão dos pobres do interior do Brasil e uma das principais tarefas que os governos democráticos devem realizar é reduzir esse hiato entre os diferentes estratos da população”.
Reforma agrária
O estudo informa que as maiores mudanças em termos de reforma agrária, que só tomaram impulso após a metade do primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram postas de lado pela administração federal em 2016, durante o governo Temer, quando o antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário foi reduzido ao nível de secretaria, e completamente abandonadas em 2019, durante o governo Bolsonaro, quando essa secretaria, esvaziada de suas funções e renomeada, foi subordinada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
O número de famílias assentadas por ano alcançou 584.655 durante o período Fernando Henrique Cardoso e 614.088 durante o período Lula. Caiu para 133.635 ao longo do governo Dilma, no contexto de uma grave crise econômica. Foi drasticamente reduzido para 10.077 no período Temer. E baixou ainda mais, para apenas 9.222, com Bolsonaro.
“O total de famílias assentadas no meio rural brasileiro desde a redemocratização [1985] gira em torno de 1,5 milhão. Além de serem em número muito pequeno, considerado o montante da população rural, os assentamentos não modificaram substancialmente o quadro de desigualdade econômica e social prevalente no campo. O Índice de Gini, que mede a desigualdade, praticamente não mudou nas duas últimas décadas. Há uma grande diferença entre distribuição de terra e reforma agrária. Além da terra, uma reforma agrária pressupõe financiamento público e assistência técnica, entre outros benefícios”, explica Zimerman.
Um dos resultados do modelo vigente, que privilegia a grande propriedade e a produção de commodities, é o forte impacto sobre o preço dos alimentos. “Nas duas últimas décadas, o preço dos alimentos quintuplicou na América Latina. E a pressão que isso exerce sobre o orçamento doméstico é enorme. Nos países desenvolvidos, a fatia do orçamento doméstico destinada à compra de alimentos varia de 10% a 15%. Nos países não desenvolvidos e em desenvolvimento, ela consome de 65% a 80%”, contabiliza o pesquisador.
As crises alimentares, registradas nos anos 2007-2008, 2011-2012 e, agora novamente, durante a pandemia, são temas de uma nova pesquisa, que está sendo desenhada por Zimerman. Nesse novo trabalho, o pesquisador pretende ampliar seu foco, contemplando também as aquisições de terras por grandes investidores estrangeiros (árabes, nórdicos e chineses); os impactos das mudanças climáticas na violência agrária; o papel dos indicadores demográficos globais, com o aumento da população e o consequente aumento do consumo pressionando o uso da terra e constituindo um ainda maior fator de violência; e a polarização política nos países latino-americanos.
O artigo Land Inequality in Brazil: Conflicts and Violence in the Countryside pode ser acessado em: link.springer.com/chapter/10.1007/978-3-031-10264-6_6 (Agência Fapesp, 8/2/23)