Por Blairo Maggi e Eumar Novacki
Tema será julgado na Corte em breve, mas aquisição de terras no Brasil por estrangeiros precisa manter “travas legais” para evitar riscos sociais e manter soberania e segurança alimentar.
No cenário de um mundo cada vez mais globalizado, a aquisição de terras por estrangeiros tem se tornado um tópico de crescente relevância. Diversos países estão imersos em discussões sobre como atrair investimentos externos sem comprometer a soberania nacional e sem ameaçar a segurança alimentar, ao mesmo tempo em que consideram os fatores sociais envolvidos.
É preciso que se examine o tema sem paixões e com muito equilíbrio. Questões envolvendo terras no Brasil são tradicionalmente polêmicas, seja quando envolvem a reforma agrária, seja quando se discute, por exemplo, a produção de alimentos transgênicos. Não poderia ser diferente. O Agro é a locomotiva da economia brasileira: gera um de cada três empregos no País, é responsável por cerca de 25% do PIB e quase 50% das exportações, graças, em grande medida, às terras abundantes.
A própria Constituição Federal deu importância singular ao tema, tratando da função social da propriedade — que ganhou uma abrangência mais ampla, especialmente diante do protagonismo assumido pelo Brasil como grande player global na produção de alimentos — e protegendo, através dela, a soberania nacional.
Nesse contexto, durante o período em que estivemos no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2016-2018), a questão da venda de terras para estrangeiros era assunto recorrente. Argumentava-se, não sem razão, que a possibilidade de alienação de imóveis rurais para estrangeiro geraria maior oferta de crédito agrícola com taxas melhores, por instituições internacionais de crédito, uma vez que a terra passaria a ser garantia real do negócio. Juros menores significariam diminuição no custo de produção e aumento da renda.
De fato, tal alienação deve ser incentivada, mas não isenta de qualquer condicionante. É inegável a preocupação com a influência do capital estrangeiro e a segurança alimentar. Daí o tratamento diferenciado previsto no artigo 190 da nossa Constituição, que determina que a lei fixe as condições não só para aquisição, mas também para o arrendamento de propriedade rural, para pessoa física ou jurídica estrangeira, definindo inclusive os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional, cuja inobservância levaria a nulidade dos contratos realizados.
Sem as restrições que a lei estabelece, a demanda por terras no Brasil pelo capital estrangeiro traria imenso risco sistêmico. Em um primeiro momento as áreas seriam supervalorizadas, levando muitos produtores rurais a deixarem a atividade agropecuária, principalmente os de pequeno e médio porte.
Vislumbra-se, assim, um sério risco social e econômico com consequências negativas na segurança alimentar, decorrentes da autonomia dos novos donos das terras de decidir o que plantar e para quem vender seus produtos. Desse modo, os interesses passariam a ser exclusivamente de mercado, e, dependendo da extensão e do apetite, manipulações de preços no mercado internacional não estariam descartadas.
Defendemos a aquisição de terras no Brasil por estrangeiros, mas mantendo algumas “travas legais” que impeçam danos colaterais irreversíveis. Isso significa dizer que tanto a Lei 5.709, de 7 de outubro de 1971, que regula a aquisição de imóvel rural por estrangeiro residente no país ou pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil, quanto o Decreto 79.065 de 26 de novembro de 1974, que a regulamenta, devem ser observados, sob pena de, no médio e longo prazo, surgirem graves problemas.
Tal legislação carece de modernização que considere, por exemplo, a possibilidade da terra ser garantia real em tomada de empréstimos internacionais, e ainda, pondere o risco de fundos soberanos adquirirem terras no Brasil, descreva a extensão territorial da produção por estrangeiros e sua destinação, em especial as commodities. Mas não há o que se falar em atualização legislativa sem o enfrentamento de um ponto nodal, qual seja, o trecho da lei que estabelece: “Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior”, cuja constitucionalidade está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal (STF).
A definição de que empresas brasileiras com capital majoritariamente estrangeiro (e portanto de controle externo), sejam submetidas às mesmas restrições que a lei exige para empresas estrangeiras, serviria para reafirmar o que esse trecho pretende: evitar uma burla ao bem jurídico que o ordenamento brasileiro sempre buscou defender.
Portanto, só haveria efetividade da norma, se, na menção “estrangeiro”, estivessem incluídas entidades nacionais controladas por capital externo.
O STF deverá decidir em breve essa questão, primeiro passo para que se avance na modernização dessa importante legislação, que, a nosso ver, deve ser mais liberal e permitir a alienação de terras a estrangeiro, mas com limites legais que mitiguem o risco sistêmico, econômico e social, sem atrapalhar a garantia real que a terra representa (Estadão.16/12/23)