Medida pode fazer atributos sustentáveis do país serem reconhecidos e recompensados. Regulamentação tem potencial de impulsionar mercado voluntário e promover verdadeiro boom econômico verde.
Descarbonizar é o grande desafio para frear as mudanças climáticas. E uma das estratégias que o mundo adotou foi atribuir um valor econômico à redução das emissões. Por convenção, uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) corresponde a um crédito de carbono, que pode ser negociado no mercado internacional. A redução da emissão de outros gases geradores de efeito estufa também pode ser convertida em créditos de carbono, utilizando-se o conceito de carbono equivalente. Assim, uma empresa ou governo pode compensar parte das suas emissões pagando à outra entidade que polui menos. O recebedor do dinheiro deve investi-lo em fontes de energia renováveis e projetos de conservação ambiental.
Em outubro passado, a Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal aprovou o projeto de lei que cria o Sistema Brasileiro do Comércio de Emissões (SBCE) e regulamenta o mercado de carbono no Brasil. O PL 412/2022 ainda precisa ser aprovado na Câmara.
O país se encontra num momento crucial rumo à descarbonização de sua economia. Além da estreia no mercado regulado de carbono estar num horizonte próximo, o governo lançou em setembro o Programa Combustível do Futuro, que traz um conjunto de iniciativas para promover a mobilidade sustentável de baixo carbono, e a Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei, originado e aprovado no Senado, estabelecendo o marco legal das atividades de captura e armazenamento de dióxido de carbono (CCS) em reservatórios geológicos no país.
A precificação do carbono e os tipos de mercado
A ideia nasceu a partir do Protocolo de Kyoto, de 1997, que formulou o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), um instrumento que permitia que países desenvolvidos financiassem projetos para redução de emissões em países emergentes. Colocado em prática a partir de 2005 na Europa, o MDL acabou perdendo credibilidade, em meio a dúvidas sobre sua eficiência.
O MDL era baseado estritamente na compensação, e os preços baixos das licenças também foram um dos motivos de seu declínio. Créditos já gerados pelo programa continuam em vigor e sendo negociados, mas novos certificados não são mais expedidos desde 2021. Os instrumentos de comercialização de carbono, no entanto, seguiram paralelamente em constante amadurecimento, e o modelo vigente na União Europeia virou o paradigma de referência.
Os mecanismos em pleno funcionamento são os sistemas de comércio de emissões que operam numa lógica conhecida como “cap-and-trade”. Nela, o governo instaura cotas para emissões: há um limite de quanto as empresas podem poluir. Quando uma empresa reduz suas emissões, ela pode vender as cotas que sobraram para empresas que não conseguiram cumprir suas metas. O sistema geralmente é aplicado a indústrias pesadas e empresas do setor energético, instâncias que já são normalmente reguladas pelo Estado.
A União Europeia tem o maior mercado de carbono do mundo, tendo movimentado 752 bilhões de euros em créditos de CO2 equivalente em 2022. O segundo maior mercado regulado é o da Califórnia. Sistemas cap-and-trade também estão presentes na China, na Nova Zelândia, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, México, Cazaquistão, Japão, Coreia do Sul, Indonésia e alguns estados americanos. De acordo com o Banco Mundial, existem hoje 72 iniciativas nacionais ou subnacionais de precificação de carbono em vigor no mundo, incluindo não apenas comércio de créditos via mercados regulados de carbono, mas também medidas de taxação de carbono.
Já o mercado voluntário foi desenvolvendo-se paralelamente ao regulado. Em vez de guiar-se por regras e metas estabelecidas por governos, essa geração de créditos parte da iniciativa das próprias empresas, que buscam agregar valor aos seus produtos por meio de práticas de sustentabilidade. Créditos de compensação voluntária são certificados por certificadoras internacionais. A maior delas é a Verra, uma organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos.
A proposta brasileira
O projeto brasileiro está alinhado com o modelo cap-and-trade e impõe um limite de emissões para empresas que emitem mais de 25 mil toneladas de gases de efeito estufa por ano. Além disso, empresas que emitem acima de 10 mil toneladas de gases do efeito estufa terão de apresentar relatórios e cumprir com planos de monitoramento e redução menos rígidos. Quando ultrapassam o limite imposto, as empresas têm de adquirir cota excedente de outra companhia ou adquirir créditos de carbono reconhecidos no SBCE. Contudo, a lei prevê um teto para essa compensação.
O projeto de lei propõe a criação de um órgão gestor que deve definir quais atividades, instalações, fontes e gases serão regulados e quais os patamares de emissão e mensuração das emissões. No entanto, o funcionamento desse órgão gestor ainda não está completamente definido pelo texto. O projeto estabelece um período de transição de dois anos. “O país está avançando muito, reconhecendo a importância do tema com um diálogo que está envolvendo diversos setores”, aponta Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV.
A primeira expectativa quanto à regulação do mercado de carbono é a criação de uma nova demanda por créditos. Certos setores, como o da aviação, por exemplo, não têm uma margem ampla para reduzir sua pegada ambiental. Por isso, Vargas avalia que a necessidade de abater emissões criará uma nova procura por créditos e um mercado com grande potencial.
Para Isabela Morbach, advogada especialista em energia e fundadora e diretora da CCS Brasil, a grande vantagem de se estabelecer um mercado de carbono regulado no país é a previsibilidade e segurança que ele pode trazer às indústrias que visam a sustentabilidade. “Se não há obrigações para todos, as indústrias que investem na sua descarbonização podem ter produtos mais caros. Mas com o mercado regulado, as indústrias podem se movimentar de forma que não fiquem prejudicadas concorrencialmente”, afirma. Além disso, ela acredita que a entrada em vigor do mercado regulado brasileiro pode trazer maior competitividade aos produtos nacionais no mercado externo. “Estamos vendo taxação de fronteira por emissão de carbono no mercado europeu. Estamos vendo surgir a mesma taxação no Canadá, e a tendência é que essas taxações vão se multiplicando”, explica Isabela.
O projeto foi criticado por alguns setores por não incluir na regulamentação o agronegócio — um dos ramos que mais emitem gases de efeito estufa no país. Vargas argumenta que existem limites científicos e institucionais que tornam a adoção do mercado regulado de carbono na agricultura algo indesejável e contraproducente. “Podemos ingressar em uma fazenda e fazer um buraco por hectare no chão, mandar pra um laboratório e pagar 300, 400 reais por amostra para conseguir medir sua pegada de carbono. Porém, carecemos dessa infraestrutura no país e em todo o mundo para fazer isso de forma automatizada e generalizada. Quando se busca um instrumento regulatório cujo objetivo é por um custo sobre a produção, precisa ser capaz de individualizar esse custo”, explica Vargas.
Vale lembrar que nenhum mercado regulamentado de carbono no mundo inclui a agricultura no seu regime. Os mecanismos costumam ser adotados em setores que já são previamente regulados: agrega-se uma complexidade a uma estrutura pré-existente.
O atual mercado voluntário no país
O mercado voluntário de carbono no Brasil é, em geral, incipiente, mas está em crescimento. É o que aponta um estudo realizado em 2022 pelo laboratório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargar (FGV), que mapeou a existência de cerca de 150 projetos certificados internacionalmente, sendo que mais de 90% certificados pela Verra.
A maior parte dos projetos concentra-se na região Norte e na Amazônia brasileira. Apesar de 63% dos projetos estarem ligados ao setor energético, com a substituição de matriz fóssil por limpa, o maior volume de créditos, 65,5%, é gerado através de um mecanismo de compensação voltado especificamente para florestas, conhecido como Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+).
“Muitos projetos são ligados a grandes propriedades de terra, em geral com mais de 10 mil hectares, que possuem excedente de reserva legal e que geram REDD para manutenção dessa floresta, em vez de exercer a opção do desmatamento que a lei garante”, explica Daniel Vargas.
Recentemente, dois nomes de impacto fizeram suas primeiras compras de crédito de carbono no mercado voluntário: Petrobras e Banco do Brasil. A petroleira adquiriu créditos equivalentes a 175 mil toneladas de gases de efeito estufa junto ao Projeto Envira Amazônia, sediado no município de Feijó, no Acre. A ação corresponde à preservação de uma área de 570 hectares da Floresta Amazônica. Já o Banco do Brasil comprou 5 mil créditos de carbono no mesmo projeto, Envira. Além disso, o banco passou a aceitar créditos de carbono como pagamento em leilões de imóveis rurais, em um claro sinal de investimento no setor de carbono como um novo ativo.
Para o professor da FGV, um dos grandes ganhos que a instauração do mercado regulado pode trazer é o seu potencial de impulsionar também o mercado voluntário. “À medida que o Brasil regulamenta seu mercado de carbono e cria critérios mais rigorosos para padronização e registro de metodologias, também ajuda a estruturar e tornar mais robusto, seguro e abrangente o mercado voluntário.”
Limitações e fragilidades
Os mercados de carbono existentes baseiam-se no princípio da “adicionalidade” para validar sua efetividade. Para ser considerado adicional, um projeto precisa provar que as reduções de emissões de gases de efeito estufa geradas por meio de crédito de carbono não teriam ocorrido de qualquer maneira sem os recursos aplicados diretamente por ele. É preciso ter a certeza de que é graças aos créditos que certa conservação de floresta, painel solar, preservação de bioma ou fonte eólica existe.
Muitas denúncias de que os créditos de carbono não promovem o benefício climático que alardeiam vieram a público nos últimos anos. Demonstrar e verificar a adicionalidade na prática pode ser uma tarefa complexa. Em uma investigação divulgada em 2019, a ProPublica, organização americana de jornalismo investigativo independente, apontou que os créditos de carbono não compensaram a quantidade de poluição que se esperava ou trouxeram ganhos que foram rapidamente revertidos ou que não podiam ser comprovados e medidos. Além disso, a organização destacou um estudo apontando que 37% dos projetos de REDD foram implementados em terras que já são protegidas, como parques nacionais.
Projetos de compensação florestal enfrentam vários desafios para avaliação de seu impacto. Há problemas de monitoramento de florestas e o cálculo de quanto desmatamento haveria sem compensação é complexo. Além disso, muitas vezes proteger um pedaço de terra aumenta a pressão de desmatamento em outro ponto. A degradação da floresta pode ser apenas redirecionada.
Outro fator é que esses projetos têm em geral como alvo moradores de zonas rurais que cortam árvores para algum fim de sustento, como a agricultura. Para que deixem de ter esse ganho econômico, as vendas de crédito de carbono precisam ser uma alternativa tão lucrativa quanto, o que nem sempre é o caso. Uma pesquisa da Universidade de Berkeley financiada pela ONG Carbon Market Watch apontou que créditos de carbono não eram adequados para compensar emissões na Amazônia.
Neste ano, a Defensoria Pública do Estado do Pará identificou que cinco empresas brasileiras e três estrangeiras usaram terras públicas como se fossem particulares para vender créditos de carbono na Amazônia. Os responsáveis alegaram que os projetos estavam em propriedades particulares, mas, na verdade, funcionavam em terras estaduais e teriam, portanto, de ter autorização dos órgãos do governo para operar, assim como das comunidades locais.
Alguns ativistas climáticos apontam que créditos de carbono são uma solução mais barata e imediatista que atrasa as empresas na sua busca por alternativas sustentáveis. Não vão na raiz do problema e podem abrir margem para a “lavagem verde”. De acordo com levantamento da BloombergNEF, dúvidas sobre qualidade de projetos levaram a uma queda de 4% no mercado voluntário de créditos de carbono em 2022, quando comparado com o mesmo período de 2021. Já defensores do modelo apontam que casos pontuais não invalidam todo o mecanismo que, segundo eles, deve ser constantemente aprimorado.
Para a diretora do CCS Brasil, a proposta do mercado regulado brasileiro apresenta ferramentas que impedem a sua operação apenas como uma fachada, sem ganhos reais em sustentabilidade. “Só seria verdade se o limite de compensação fosse infinito, mas minuta da lei vigente hoje coloca limite na compensação. Ao que tudo indica, o limite será de 10 a 15%, não é muito alto.”
“É evidente que a compensação tem um papel, mas se um dos objetivos é estimular o desenvolvimento de tecnologias, ela não pode ser um substituto para as exigências impostas às atividades reguladas”, enfatiza Vargas.
“Não dá pra cravar que não vai ter greenwashing. Vai depender da fiscalização e operação desse mercado. Mas temos que ser otimistas de que vai ser um mecanismo de comando e controle que vai fazer sua função”, frisa Isabela.
Caminho de oportunidades
Na economia internacional, a baixa pegada de carbono é cada vez mais percebida como sinônimo de qualidade do produto. Assim, há uma tendência do mercado de pagar um prêmio por processos produtivos que obedecem a boas práticas.
À medida que o mercado regulado opera e seus paradigmas se disseminam por outros espaços da economia, outros setores não regulados podem incorporar a agenda ambiental como um ativo. Vargas acredita que a agricultura e o setor de alimentos do país podem ser os maiores beneficiados com essa mudança. “É um setor que acaba muitas vezes recebendo injustamente e imprecisamente atribuições de responsabilidade por emissões que não são associadas diretamente a eles. Mas acabam sendo colocados sobre sua conta por critérios de responsabilidade generalistas, que tratam aos diferentes como iguais.”
Existe, portanto, um interesse em qualificar e aprofundar a discussão e avaliação de um setor que é o carro-chefe das exportações do país e encontra-se bastante exposto às exigências internacionais. “É preciso mostrar como a vasta maioria dos produtores faz um trabalho ambientalmente correto, e, portanto, não podem ser colocados no mesmo balaio daqueles que não fazem”, diz.
Para Vargas, a produção de alimentos no Brasil tem uma grande vantagem sustentável: práticas como a existência de reservas legais sob a responsabilidade do produtor, plantio direto, integração lavoura-pecuária-floresta, múltiplas safras no mesmo território, demanda decrescente no uso de químicos e incorporação contínua de novas tecnologias. “Hoje, um produtor que vende uma saca de soja para a Europa, carrega consigo nessa saca de soja pelo menos 20% de reserva embutida. Isso até agora não tem valor ou não tem precificação.”
O especialista acredita que o que deve nortear a regulamentação do mercado de carbono é sua possibilidade de fazer atributos sustentáveis do país serem reconhecidos e computados. “Na história e na prática produtiva de países tropicais como o Brasil, as nossas virtudes são imensamente mais significativas do que nossos vícios. Precisam aprender a olhar o meio ambiente, não apenas como um custo, uma obrigação moral, uma tarefa global e individual, mas como uma oportunidade para se produzir com mais qualidade, e ser recompensado por isso”.
Vargas defende que o modelo de regulamentação brasileiro seja um mecanismo que estimule o “sim” mais do que o “não”: “Nosso objetivo não pode ser punir um ou outro setor com um instrumento ideológico de caça às bruxas. É uma política de Estado, cujo objetivo não pode ser a arrecadação pública ou criar um segundo Ibama, para sair multando e colocando gente na cadeia. O objetivo tem de ser estimular a inovação para fomentar a competitividade via sustentabilidade, como está sendo feito na Europa e na Califórnia.” (DW, 16/12/23)