Países como Chile, EUA, Arábia Saudita e Austrália definiram arcabouço regulatório e criaram incentivos para setor; Brasil entrou no debate dois anos depois daqueles que estão na vanguarda, segundo especialistas.
No mesmo domingo em que chegou da Europa, o alemão Robert Habeck cruzou o centro de Belo Horizonte rumo a uma região pouco frequentada por turistas estrangeiros. Em 12 de março de 2023, o então ministro das Finanças e vice-chanceler da Alemanha se tornava o quinto representante do poderoso país europeu a pisar no Brasil desde a posse do presidente Lula, dois meses antes. O interesse era claro: a produção do “novo petróleo”, como vem sendo chamado o hidrogênio verde.
Habeck foi ao lançamento da pedra fundamental do que deve se tornar a primeira fábrica de equipamentos para produzir hidrogênio verde na América Latina. A alemã Neuman & Esser (NEA) gastou R$ 70 milhões para levantar a estrutura que, no prazo de um ano, seria capaz de entregar os geradores de hidrogênio verde para grandes projetos de usinas no Brasil. Mas não foi bem isso que aconteceu.
“Tivemos um pequeno atraso. O cronograma de operar em abril ou maio de 2024 passou para agosto ou setembro. E em novembro faremos a inauguração oficial”, afirma Marcelo Veneroso, CEO da Neuman & Esser no Brasil. Parte das licenças ambientais para a expansão da fábrica haviam sido concedidas, mas a aprovação na prefeitura de Belo Horizonte para a construção demorou a sair. “O solo estava pronto, era só subir as paredes”, disse Veneroso ao Estadão, no período que a empresa aguardava a última etapa burocrática. Agora, garante ele, a obra está a pleno vapor.
O hidrogênio verde é a grande aposta do mundo para substituir os combustíveis fósseis e reduzir as emissões de carbono do planeta. O mercado é promissor para o Brasil, que pode oferecer um dos hidrogênios mais competitivos do mundo. E a história da Neuman & Esser em Belo Horizonte é uma alegoria do que ocorre no País: o potencial é alto, com promessa de empregos e investimentos, interesse estrangeiro, e os projetos ligados ao hidrogênio verde têm tudo para sair do papel. Mas ainda não saíram.
Ao redor do mundo, países correm para fazer a produção de hidrogênio verde deslanchar. Na semana passada, a Enap, estatal chilena de óleo e gás, anunciou que a empresa Neuman & Esser será responsável por construir uma planta de hidrogênio verde que deve começar a operar em 2025.
“Se o Brasil está preparado para aproveitar essa oportunidade? Ele está se preparando. Outros países estão numa velocidade muito maior. Só que outros países não têm as características favoráveis que o Brasil tem”, afirma o pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina Ricardo Rüther.
O hidrogênio precisa usar fontes de energia renováveis para ser considerado ‘verde’. É como o Brasil sai na frente. Em todo o mundo, fontes renováveis como solar e eólica correspondem a 2,7% da matriz energética. Quando são somadas a hidráulica e a biomassa, essa fatia chega a 15%. No Brasil, com a diversidade de fontes renováveis, opção pelas hidrelétricas e uso de biomassa de cana de açúcar, a energia de fontes renováveis já corresponde a 47,4% da matriz.
Enquanto o resto do mundo se baseia em combustíveis fósseis para gerar energia, o Brasil faz uso dos recursos renováveis, e se beneficia, por exemplo, da abundância de rios, variação de altitude e precipitação, para a geração da energia hidráulica. Também conta com condições favoráveis de vento e de incidência solar para explorar o mercado de renováveis.
O sistema de distribuição de energia interconectado também favorece o Brasil. Isso porque a fonte de energia não precisa estar ao lado da usina de hidrogênio, já que é possível “puxar” energia pela rede de distribuição.
“O Brasil tem um potencial enorme por já ter uma parcela bastante alta de energia renovável. O País tem condições bastante competitivas para gerar energia limpa. Então, é definitivamente um dos lugares onde o hidrogênio tem uma verdadeira oportunidade”, diz Peter Terwiesch, executivo da ABB, multinacional suíça que fornece tecnologia de eletrificação que pode ser usada na produção de hidrogênio verde.
A Mckinsey estima que toda a cadeia de valor do hidrogênio verde, da geração à exportação, pode movimentar US$ 200 bilhões no Brasil até 2040.
O Nordeste se destaca ainda mais pela localização, que facilita a exportação do produto para a Europa e por ter uma matriz energética mais limpa do que a média brasileira. Até agora, Estados da região têm concentrado os anúncios de projetos de usinas de hidrogênio, com o Ceará em primeiro lugar.
“O Brasil tem essa oportunidade gigante por três motivos principais: tem uma abundância de energia solar e eólica, tem um mercado de eletricidade operando de maneira regular e bem organizado e estamos próximos de mercados exportadores. O Nordeste brasileiro, onde vai ter muita geração de hidrogênio verde concentrada, está ali na boca da Europa”, afirma Ricardo Rüther, coordenador do Laboratório Fotovoltaica, da UFSC.
O porto de Pecém, no Ceará, se prepara para ser o principal polo do combustível no Brasil. Há cinco pré-contratos para construção de usina de hidrogênio verde anunciados em Pecém, que somam US$ 8 bilhões de investimento. As empresas que já assinaram os pré-contratos são: AES, Casa dos Ventos, Fortescue, Cactus Energia e uma quinta, cujo nome é mantido em sigilo até o momento. No pré-contrato, o investidor já reserva a área desejada dentro da Zona de Processamento e Exportação (ZPE) do Complexo de Pecém, e começa a pagar pelo aluguel da área.
Há ainda 36 Memorandos de Entendimento (MoU) firmados em Pecém. No MoU, etapa anterior ao pré-contrato, a empresa firma um acordo com o Complexo do Pecém para a realização dos estudos preliminares de viabilidade do projeto. Nesta fase não há reserva de área ou contraprestações financeiras. O governo estadual aposta que a movimentação em torno dos projetos deve duplicar a quantidade de empregos diretos e indiretos na região.
A oportunidade atraiu interesse estrangeiro. De olho no potencial do hidrogênio verde, o Porto de Roterdã, o maior da Europa, fez uma parceria com o de Pecém e investiu 75 milhões de euros no complexo industrial.
Suape, em Pernambuco, e Açu, no Rio de Janeiro, também têm trabalhado para atrair bilhões de reais aos seus ‘hubs’ de hidrogênio verde. Nos três portos, no entanto, não há sequer uma obra para instalação das usinas em andamento.
Em Suape, são 16 os memorandos de entendimentos para projetos de hidrogênio. Embora os memorandos sejam apenas um sinal da intenção da empresa em se instalar no local, há otimismo de que parte dos projetos se concretize. Em Açu, há apenas acordo para estudos de viabilidade fechados com a espanhola Neoenergia, a chinesa SPIC e as brasileiras Comerc e Casa dos Ventos.
Apesar de a tecnologia para obter o hidrogênio verde, a eletrólise, ter 200 anos, ela vem ganhando a atenção de empresas e investidores recentemente devido ao potencial de gerar energia sem emissões. O contexto geopolítico mundial, com a guerra entre Rússia e Ucrânia, também fez o mundo prestar mais atenção na fonte alternativa de energia.
No processo de eletrólise da água, o hidrogênio é separado do oxigênio por meio de corrente elétrica. Depois, ele pode ser armazenado na forma de gás em botijões ou transformado em amônia para ser transportado. Ao chegar no local de uso, precisa ser reconvertido em hidrogênio. Há outros tipos de hidrogênio, como azul, cinza e marrom, classificados assim a depender da fonte de energia.
Atualmente, a demanda anual por hidrogênio cinza (produzido a partir de combustíveis fósseis, como o gás natural) é de 96 milhões de toneladas por ano. Esse produto é usado, principalmente, em fertilizantes e na indústria de aço e poderá ser substituído pelo verde.
A maior demanda no futuro, entretanto, deve vir de mercados em que hoje o hidrogênio não é explorado, como no transporte e em outros processos industriais. Há, por exemplo, estudos para utilizá-lo como combustível de avião, navio e caminhões. “Esse mercado ainda não está mapeado. Mas aí, com certeza, a demanda será muito maior do que a que se tem hoje pelo hidrogênio cinza”, diz o diretor de estratégia e novos negócios da consultoria Thymos, especializada em energia, Jovanio Santos.
Em todo o mundo, são pouquíssimos projetos de hidrogênio verde que já estão em operação. Entre eles, estão o da Iberdrola, inaugurado na Espanha em 2022, o da Engie e do Walmart, no Chile, e três unidades da Lhyfe, na França.
“De uns quatro anos para cá, o hidrogênio começou a ganhar força. A geração do hidrogênio em larga escala é uma novidade para o mundo. E o uso dele dentro da sociedade é novidade. Então, o mercado é novo para todo mundo, as empresas estão se adaptando e ainda se formatando para esse negócio”, afirma Veneroso.
Os europeus saem na frente quando o assunto é investimento em projetos de hidrogênio limpo, considerando hidrogênio verde e hidrogênio azul, que não vem de fonte renovável mas é de baixo carbono, segundo dados do Conselho Mundial do Hidrogênio.
Hidrogênio Projetos* de hidrogênio limpo (engloba hidrogênio verde e hidrogênio azul) com decisão final de investimento anunciados até outubro de 2023
“O que dizemos aqui no nosso laboratório é que fomos além do PowerPoint. Mas é algo muito novo no mundo inteiro”, diz Ricardo Ruther. O engenheiro é coordenador do Laboratório Fotovoltaica da federal catarinense, que existe há 26 anos e inicialmente se dedicava ao estudo da energia solar. Em agosto do ano passado, o laboratório inaugurou a primeira planta (em escala de pesquisa) de hidrogênio verde do País. Antes disso, em janeiro, a EDP Brasil anunciou a inauguração do primeiro módulo de produção de hidrogênio verde no País, em Pecém.
A intenção do professor da UFSC era comprar equipamentos de empresas nacionais para tirar do papel a primeira usina – ainda experimental – a produzir hidrogênio verde no Brasil. Mas a única capaz de fornecer as máquinas, a Neuman & Esser, não atenderia o prazo estipulado para o projeto.
A alternativa foi importar as máquinas da alemã H2 Core Systems. Técnicos da Alemanha viajaram a Santa Catarina para instalar os equipamentos. “Não temos essa capacitação ainda. Isso precisa ser fomentado”, afirma o professor e especialista no assunto. “Essa empresa já está pensando em abrir um escritório aqui no Brasil para isso.”
Para tirar o laboratório de hidrogênio do powerpoint, ele contou com incentivo público nacional e estrangeiro, em uma cooperação entre os governos do Brasil e da Alemanha. Há oito anos, o laboratório recebeu dinheiro do Ministério da Ciência e Tecnologia do Brasil para construir uma infraestrutura para dar suporte à capacitação de recursos humanos para a nova atividade, que era a energia solar. Mais recentemente, a UFSC contou com dinheiro do governo da Alemanha.
O histórico da relação com a Alemanha é antigo. “Eu fui treinado na Alemanha, várias pessoas aqui já passaram algum tempo lá. Recebemos pesquisadores de lá e o governo alemão enxerga no Brasil um potencial fornecedor de hidrogênio verde para si. Com a invasão russa na Ucrânia, isso se exacerbou. Botar todos os ovos no mesmo cesto ficou complicado”, conta. Com a verba do governo alemão, o pesquisador deu início à criação do bloco C do seu laboratório, que foi destinado ao hidrogênio.
O laboratório de hidrogênio da UFSC foi inaugurado em 2 de agosto. A coleta de água e de energia para produzir o hidrogênio é feita através da própria construção do prédio, que tem placas fotovoltaicas no lugar de telhas. “Com isso, geramos a energia necessária para eletrólise e captamos a água da chuva nos próprios telhados”, afirma Ricardo Rüther.
“Cada 5% de otimização na geração de energia vale muito, para que a produção de hidrogênio tenha um preço mais competitivo.” O projeto arquitetônico, com placas como material de construção, foi financiado pela chinesa BYD. As placas solares, neste caso, não vêm sobre a telha, como de costume, mas são a própria cobertura.
Também receberam dinheiro do governo da Alemanha para desenvolvimento e pesquisa de hidrogênio verde as universidades Federal de Itajubá (Unifei) e a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Universidade de São Paulo (USP) trabalha para desenvolver uma tecnologia capaz de transformar etanol em hidrogênio verde. O projeto recebeu R$ 50 milhões de investimento, numa parceria com a Shell Brasil, Raízen, Hytron, Toyota e o Senai.
Ainda que todo o globo esteja começando a explorar essa indústria agora e o Brasil já tenha plantas de pesquisa em operação, o País já chega atrasado a essa corrida. Apesar de a discussão sobre a viabilidade do combustível ter ganhado força globalmente entre 2018 e 2019, por aqui, o debate começou a ficar concreto apenas em 2021, segundo o consultor Henrique Ceotto, sócio da McKinsey.
Na avaliação do Ceotto, o Brasil continuará com esse atraso de dois a três anos em relação aos que estão na vanguarda, como Estados Unidos, Chile, Austrália e Arábia Saudita. Nesses países, apesar de ainda não haver usinas em escala industrial operando, já há incentivos e arcabouço regulatório definido para impulsionar o desenvolvimento do setor.
Esse atraso, no entanto, não será suficiente para o Brasil perder a oportunidade econômica, de acordo com o consultor. Ele prevê anúncios mais concretos de projetos de grande porte a partir deste ano e a operação de usinas após 2030. “Vamos ver muita coisa em construção entre 2025 e 2030.”
Diretor da consultoria Thymos, Jovanio Santos, porém, afirma que o Brasil precisa “apertar o passo para não perder o bonde do hidrogênio verde”.
Levantamento da Thymos aponta que hoje há no Brasil solicitação de outorga para a geração de quase 230 GW de energia solar e eólica. Hoje, a matriz renovável é de 200 GW. Portanto, grande parte desses novos projetos poderá ser usada na produção de hidrogênio verde. Para eles se tornarem realidade e alimentar a indústria de hidrogênio, entretanto, falta um “planejamento estratégico” por parte do governo, diz Santos.
“Temos uma matriz energética renovável significativa e muitos projetos novos que podem oferecer energia para a produção de hidrogênio, mas o país precisa ter uma estratégia nacional para avançar.”, afirma Jovanio Santos, diretor da consultoria Thymos
O governo criou, no ano passado, um plano trienal de trabalho dentro do Programa Nacional do Hidrogênio. Na visão de Santos, entretanto, a iniciativa é de médio prazo. “Quando você pensa que o setor precisa de ganho de escala, você entende que é preciso também um plano de longo prazo. Falta definir, por exemplo, no que vamos usar o hidrogênio verde: no mercado interno ou externo? O transporte vai adotá-lo? Vamos fomentar o uso para descarbonizar o aço? Ou em fertilizantes?.”
“Sabemos que os investimentos para a transição energética são altos. Vamos precisar tanto de investimento público quanto privado e a fazenda tem o dever de desenhar os melhores instrumentos para isso. A principal contribuição até o momento são alguns projetos de lei de ordem mais regulatória”, afirma a subsecretária de Desenvolvimento Econômico Sustentável do Ministério da Fazenda, Cristina Reis.
Há dois projetos de lei que tratam da regulamentação do hidrogênio verde em tramitação no Congresso. Senadores e deputados articulam, agora, a fusão das propostas em um só texto. Em mensagem encaminhada aos parlamentares em fevereiro, no início do ano legislativo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva incluiu projetos de regulamentação da chamada pauta verde entre as prioridades de 2024. Ele incluiu entre os temas prioritários os dois textos que tratam do marco legal do hidrogênio verde. O governo também considera como prioritários outros projetos de lei que podem ajudar a destravar investimentos para a produção de hidrogênio verde no País, como o PL que trata de eólicas offshore e o PL 5174/2023, que cria o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten).
A diretora de Infraestrutura, Transição Energética e Mudança Climática do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciana da Costa, tem defendido que o governo lance mão de subsídios pontuais para incentivar alguns setores da transição climática, como o desenvolvimento do hidrogênio verde no Brasil.
“Do ponto de vista estrutural, faz muito mais sentido colocar uma planta de hidrogênio verde no Brasil. Os Estados Unidos estão forçando a colocação de plantas lá, oferecendo subsídios e incentivos. Então tem uma guerra. Esse é o nosso grande desafio”, afirma Luciana da Costa, diretora de Transição Energética do BNDES
“Nossa vantagem comparativa é tão clara e estrutural no longo prazo que o investidor… claro que vai se beneficiar dos incentivos que a economia americana está oferecendo, mas ele também vai olhar para o longo prazo. Muitos dos grandes players de hidrogênio verde vão estar no Brasil”, afirma a secretária.
“Vamos ter de ter um pouco de incentivo para o custo de funding. O Fundo Clima é onde vamos ter capital com custo diferenciado. O BNDES pode ajudar com linhas mais longas do que o mercado. Mas não vejo os projetos de hidrogênio verde antes de 2026 e 2027”, diz Costa.
As empresas têm defendido uma redução na tarifa de energia, sob o argumento de que a alta demanda de energia para produção de hidrogênio pode tornar os investimentos financeiramente inviáveis se não houver algum desconto. A energia corresponde a 70% do custo de produção do hidrogênio. O Ministério de Minas e Energia não respondeu ao questionamento do Estadão sobre o assunto.
Não necessariamente os projetos de hidrogênio verde, ainda que em portos, terão a exportação como foco. A empresa Casa dos Ventos, por exemplo, que deverá instalar sua usina no Porto de Pecém, no Ceará, prevê que dois terços de sua produção fique no mercado doméstico
“Achamos que o potencial interno é maior que o externo. Há, por exemplo, uma demanda reprimida aqui por fertilizante (do qual o hidrogênio verde pode ser matéria-prima). Também vemos várias indústrias interessadas (no combustível)”, diz Francisco Habib, diretor de engenharia da Casa dos Ventos.
O consultor Arthur Ramos, sócio do BCG, destaca que a demanda interna deve ser responsável por dar o pontapé inicial no setor, dado que depende de menos variáveis, em um prazo de dois ou três anos. O combustível poderá ser usado, por exemplo, para a indústria siderúrgica reduzir suas emissões. Ramos projeta que até 2030, ao menos, o mercado brasileiro seja sobretudo local (Estadão, 11/4/24)