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Invasão de imóveis rurais e insegurança jurídica

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Por Celso de Mello

A Constituição da República não legitima nem autoriza a prática ilícita de atos de invasão, de “ocupação” ou de esbulho possessório de imóveis rurais ou urbanos

A invasão de imóveis rurais perpetrada mediante ação coletiva de movimentos sociais organizados, além de representar transgressão manifesta ao direito de propriedade constitucionalmente assegurado por nosso ordenamento jurídico, traduz prática ilícita configuradora de esbulho possessório que compromete a racional e adequada exploração da propriedade imobiliária rural.

Cabe observar que, muitas vezes, esse ato de violação dominial e/ou possessória é seguido por inconsequente ação predatória desenvolvida pelos invasores, o que culmina por frustrar a própria realização da função social inerente à propriedade.

Impende advertir que o esbulho possessório, além de qualificar-se como ilícito civil, também pode configurar situação revestida de tipicidade penal, caracterizando-se, desse modo, como ato criminoso (Código Penal, art. 161, § 1.º, II), inclusive naqueles casos em que a invasão, com intenção de ocupá-las, incidir sobre terras da União, dos Estados e dos municípios (Lei n.º 4.947/66, art. 20).

O Código Penal brasileiro igualmente define, em seu artigo 202, como crime de “sabotagem”, punível com reclusão de um a três anos e multa, o ato de “invadir ou ocupar estabelecimento industrial, comercial ou agrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o curso normal do trabalho, ou, com o mesmo fim, danificar o estabelecimento ou as coisas nele existentes ou delas dispor”.

A União Federal, mesmo tratando-se da execução e da implementação do programa de reforma agrária, não está dispensada da obrigação, que é indeclinável, de respeitar, no desempenho de sua atividade de expropriação, por interesse social, os postulados constitucionais que, especialmente em tema de propriedade, protegem as pessoas e os indivíduos contra eventual expansão arbitrária do poder.

Essa asserção – ao menos enquanto subsistir o regime democrático consagrado em nosso texto constitucional – impõe que se repudie qualquer medida que importe arbitrária negação ou injusto sacrifício do direito de propriedade, especialmente quando o poder público deparar-se com atos de espoliação ou de violação possessória, ainda que tais atos sejam praticados por movimentos sociais organizados.

É por essa razão que os magistrados e tribunais não poderão, em tema de reforma agrária (como em outro qualquer), chancelar, jurisdicionalmente, atos e medidas que, perpetrados à margem da lei e com ofensa ao Direito, transgredirem e comprometerem a integridade da ordem jurídica fundada em princípios e em valores consagrados pela própria Constituição da República.

Não se pode desconsiderar o fato de que vivemos sob um regime constitucional cujos fundamentos, estruturados em bases democráticas, garantem a intangibilidade do direito de propriedade (embora este não tenha caráter absoluto), ao mesmo tempo que disciplinam, de modo rígido, o procedimento de expropriação dos bens pertencentes ao patrimônio privado.

Mostra-se inquestionável a necessidade de execução, no País, de um programa de reforma agrária, cuja implementação se faz inadiável e essencial à superação dos conflitos fundiários e à viabilização do acesso dos despossuídos à propriedade da terra.

É que o acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem, inegavelmente, elementos de realização da função social da propriedade.

A desapropriação, nesse contexto – enquanto sanção constitucional ao descumprimento da função social da propriedade (José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, página 281, item n.º 13, 32.ª ed., 2009, Malheiros) –, reflete importante instrumento destinado a dar consequência aos compromissos assumidos pelo Estado na ordem econômica e social.

Isso significa, portanto, que incumbe ao proprietário da terra o dever jurídico-social de cultivá-la e de explorá-la adequadamente, sob pena de incidir nas disposições constitucionais e legais que sancionam os senhores de imóveis ociosos, não cultivados e/ou improdutivos, pois só se tem por atendida a função social que condiciona o exercício do direito de propriedade quando o titular do domínio cumprir a obrigação (1) de favorecer o bem-estar dos que na terra labutam; (2) de manter níveis satisfatórios de produtividade; (3) de assegurar a conservação dos recursos naturais; e (4) de observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que possuem o domínio e aqueles que cultivam a propriedade.

É importante reafirmar que o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que sobre ele pesa grave hipoteca social (Paulo VI, Populorum Progressio; João Paulo II, Sollicitudo Rei Socialis; Bento XVI, Caritas in Veritate; Francisco, Fratelli Tutti), a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (Constituição federal, art. 5.º, XXIII), legitimar-se-á a possibilidade de intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República, cujo texto não legitima nem autoriza – insista-se – a prática ilícita de atos de invasão, de “ocupação” ou de esbulho possessório de imóveis rurais ou urbanos!

Nada justifica, portanto, o emprego ilegítimo de meios, quando utilizados pelo poder estatal ou por movimentos sociais com evidente transgressão aos princípios e normas que regem e disciplinam as relações entre as pessoas e o Estado.

Não se pode perder de perspectiva, por mais relevantes que sejam os fundamentos da ação expropriatória do Estado, que este não pode – e também não deve – desrespeitar a cláusula do due process of law, que condiciona qualquer atividade do poder público tendente a afetar, entre outros direitos, aquele que concerne à propriedade privada.

Essa mesma advertência também se impõe a quaisquer particulares, movimentos ou organizações sociais que visem, pelo emprego arbitrário da força e pela ocupação ilícita de imóveis rurais, a pressionar e a constranger, de modo autoritário, o poder público a promover ações expropriatórias para efeito de execução do programa de reforma agrária.

É que tais atividades são claramente desenvolvidas à margem da lei e praticadas com evidente desprezo aos princípios que informam o sistema jurídico.

Desse modo, não se pode ignorar que a Constituição da República, após estender ao proprietário a cláusula de garantia inerente ao direito de propriedade (art. 5.º, XXII), proclama que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5.º, LIV).

Cumpre assinalar, por isso mesmo, que a destituição dominial que incida sobre o proprietário de qualquer bem não prescinde – enquanto medida de extrema gravidade que é – da necessidade de estrito respeito, seja pelo poder público, seja por particulares ou entidades privadas, às garantias inerentes ao due process of law, consoante observa autorizado magistério doutrinário (Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, vol. 2/284-285, 3.ª ed., 2004, Saraiva).

Impende considerar, na análise desta questão, as ponderações feitas pelo eminente e saudoso professor Miguel Reale (Liberdade e democracia, O Estado de S. Paulo de 10/6/2000, página A2), que, em magistério irrepreensível, destaca a necessidade de respeito ao império do Direito e à soberania da lei: “Tem-se pretendido justificar os atos violentos perpetrados pelo Movimento dos Sem Terra (MST) com a invocação da liberdade na democracia, de tal modo que seriam ilícitas e reprováveis as medidas governamentais destinadas a manter a ordem pública, assegurando os direitos das vítimas dos atentados. Nada mais absurdo que tal assertiva.

Em verdade, no regime democrático a liberdade jamais poderia significar a faculdade de fazer o que bem se entende, porquanto ela é um bem comum de caráter universal, de tal modo que a ação dos cidadãos pressupõe o respeito mútuo dos direitos e prerrogativas de cada um.

Assim sendo, não há como legitimar, à luz da liberdade, a invasão de terras a pretexto de não estarem sendo devidamente cultivadas por seus proprietários. É para assegurar o cumprimento dos deveres que assiste a todos o direito de representação ao Estado, no caso de uma propriedade rural não estar atendendo à sua função social, reclamando sua desapropriação para fins de reforma agrária. O que não é lícito aos indivíduos nem a nenhum grupo social é converter-se em juiz da questão, invadindo desde logo as terras para nelas assentar agricultores (…).

Em boa hora, o Direito Constitucional brasileiro foi enriquecido pelo princípio em vigor no Common Law, e consagrado pelo inciso LIV do artigo 5.º da Constituição, segundo o qual ‘ninguém será privado da liberdade e de seus bens sem o devido processo legal’.

Isto posto, no caso de apossamento manifestamente ilegal feito pelo MST, seja de terras, seja de edifícios públicos, não se pode negar ao Estado o emprego da Polícia Militar para manter a ordem, restituindo o bem espoliado (…).

Quando se pensa o contrário, justificando atos de espoliação, é que já se deixou de raciocinar nos termos da lei, mas, sim, em função de motivos ideológicos, ou seja, das leis futuras que se pretende instaurar pela força, segundo aspirações que nada têm que ver com a democracia (…).

Como se vê, a liberdade que a democracia assegura é a exercida na forma da lei, sendo sábio o antigo brocardo ubi lex, ibi libertas, ou, por outras palavras, não há liberdade fora da lei. Isso é da essência da democracia (…).”

Sempre sustentei, no desempenho de minha magistratura no Supremo Tribunal Federal, que o exercício arbitrário das próprias razões, ainda que praticado para satisfazer pretensão eventualmente legítima, encontra repulsa no ordenamento jurídico, especialmente quando os atos que ofendem direitos de terceiros configurem medidas caracterizadoras de violação possessória, valendo relembrar e enfatizar, neste ponto, uma vez mais, que o esbulho possessório – mesmo tratando-se de propriedades alegadamente improdutivas – constitui ato revestido de ilicitude jurídica.

Para a hipótese de improdutividade do imóvel rural, existe solução estabelecida na própria Constituição da República: a utilização, pela União Federal, do instrumento da desapropriação – sanção (Constituição federal, art. 184), cabível sempre que o imóvel rural não cumprir a função social que deveria atender (Constituição federal, art. 186).

Nada pode justificar o desrespeito à supremacia da Constituição e à autoridade das leis da República, porque tal exigência representa condição indispensável e necessária ao exercício da liberdade e à prática responsável da cidadania, nada podendo legitimar a ruptura da ordem jurídica, quer por atuação de movimentos sociais (qualquer que seja o perfil ideológico que ostentem), quer por iniciativa do Estado, ainda que se trate da efetivação da reforma agrária, pois mesmo esta depende, para viabilizar-se constitucionalmente, da necessária observância dos princípios e das diretrizes que estruturam o ordenamento positivo nacional.

Não constitui demasia relembrar, neste ponto, que a necessidade de observância do império da lei (rule of law) e a possibilidade de acesso à tutela jurisdicional do Estado – que configuram valores essenciais numa sociedade democrática – devem representar o sopro inspirador da harmonia social, significando, por isso mesmo, um veto permanente a qualquer tipo de comportamento cuja motivação resulte do intuito deliberado de praticar atos inaceitáveis de violência e de ilicitude, como os atos de invasão da propriedade alheia perpetrados por quem quer que seja, inclusive por movimentos sociais organizados! (Celso de Mello é ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal; O Estado de S.Paulo, 21/4/23)

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