Por Pedro Kutney
Já passa da hora de o Brasil reconhecer sua vantagem bioenergética e incentivar suas próprias soluções para descarbonizar emissões dos meios de transporte.
Cunhada em 1958 pelo jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, a expressão complexo de vira-latas ilustra a inferioridade que os brasileiros enxergam em si próprios, como cães sem raça definida e sem valor monetário que vagam à cata de comida virando latas de lixo. O tal complexo aparece em várias áreas do cenário nacional, do futebol – que inicialmente inspirou a teoria rodriguiana com a derrota humilhante da Copa de 1950 – aos avanços tecnológicos desenvolvidos aqui.
Uma das vítimas do complexo de vira-latas é o etanol brasileiro, sua evolução no sistema flex bicombustível etanol-gasolina e o avanço para o powertrain híbrido flex, combinado com a propulsão elétrica. São todas criações brasileiras que colocam o País à frente do resto do mundo em velocidade e eficiência para reduzir e descarbonizar as emissões de gases de efeito estufa dos veículos, mas o viralatismo nacional muitas vezes classifica estas soluções como atraso ou fracasso.
Muito ao contrário, não faltam evidências que o uso de biocombustíveis, puros ou aliados à eletrificação, é a mais eficiente e rápida das soluções conhecidas para descarbonizar as emissões dos meios de transporte, especialmente quando se considera o ciclo de vida completo da produção, distribuição e uso dos combustíveis, dos veículos e, quando é o caso, de suas baterias de propulsão.
Política pública necessária
Nesse sentido, já passa da hora de o Brasil reconhecer sua vantagem bioenergética e incentivar suas próprias soluções para descarbonizar emissões.
O País precisa estabelecer com urgência políticas públicas não só para reduzir o custo de veículos de baixa emissão, inclusive adotando isenções para modelos a etanol puro, híbridos ou não, mas também é fundamental tornar o preço do etanol competitivo na bomba de abastecimento. Este é o estímulo que falta.
Calcula-se que dos 34,9 milhões de veículos flex em circulação no País somente 30% rodam com etanol hidratado puro, o E100, porque o preço do biocombustível é desvantajoso em relação à gasolina na maior parte do território nacional. Mesmo assim esta porção equivale a 10,5 milhões de carros que neutralizam cerca de 90% das emissões de CO2, reabsorvidas nas próprias plantações de cana.
Graças ao domínio de quarenta anos na produção de etanol combustível de vinte anos da tecnologia flex, mesmo sem incentivos e subutilização do biocombustível, o Brasil já tem maior frota de baixo carbono do mundo, volume que sob o prisma do viralatismo alguns chamam de fracasso.
Visto pelo prisma de solução que ninguém mais tem disponível à mão no mundo, faria enorme e imediata diferença a redução do preço do etanol para o Brasil quase zerar emissões de carbono da frota de veículos leves.
Evidências
Não faltam estudos e pesquisas que apontam a eficiência descarbonizante do biocombustível brasileiro, que se torna ainda mais efetiva quando combinada com eletrificação em modelos híbridos flex.
No início deste ano a Stellantis conduziu ensaios com um Jeep Renegade com motor 1.3 turboflex. Abastecido com etanol, E100, e equipado com um simulador da Bosch, o carro percorreu mais de 240 quilômetros nas pistas de testes da planta de Betim, MG, para medir sua emissão de CO2 no conceito poço à roda, considerando a produção, distribuição e uso do combustível.
O resultado foi a emissão de 25,79 kg de CO2 nos 240 quilômetros percorridos com E100, menos da metade dos 60,64 kg emitidos com uso da gasolina brasileira E27, misturada com 27% de etanol. O Renegade com E100 também emitiu menos do que os 30,41 kg de CO2 que seriam colocados na atmosfera por um carro 100% elétrico que usa energia gerada pela matriz europeia, mas um BEV, Battery Electric Car, emite menos, 21,45 kg de CO2, quando é alimentado pela eletricidade gerada no Brasil, cerca de 80% proveniente de fontes renováveis e neutras em carbono.
Segundo cálculos da Unica, União da Indústria da Cana, considerando o ciclo completo do poço à roda – inclui o plantio e colheita da cana, seu processamento, transporte e distribuição, além do uso nos carros –, um veículo alimentado exclusivamente com E100 brasileiro emite apenas 37 gramas de CO2 por quilômetro, valor menor do que os 54 gCO2/km um modelo a elétrico bateria com a matriz europeia, e quase igual aos 35 gCO2/km de um BEV alimentado pela energia energia mais limpa gerada no Brasil.
Especialistas apontam que a combinação do biocombustível com a eletrificação é a solução mais eficiente. Um modelo híbrido flex, como o Toyota Corolla já produzido no país desde 2019, apresenta a melhor relação de eficiência: abastecido só com etanol tem emissão de 29 gCO2/km.
Esta vantagem é ainda mais ampliada quando se leva em conta o ciclo de vida do veículo, seu combustível e sua bateria. Um recente artigo científico, já antecipado por esta coluna, elaborado por pesquisadores da Unicamp identifica o tamanho desta vantagem.
Segundo este estudo, em 160 mil quilômetros de utilização, um veículo elétrico, recarregado com energia gerada no Brasil, deixa para trás pegada de carbono equivalente a 16,7 toneladas de CO2 emitidos ao longo do ciclo, sendo que a maior parte desta emissão vem do berço, originada na fabricação do produto, com 6 toneladas de CO2, e de suas baterias, com 5,8 t/CO2.
Já um híbrido fechado, recarregado só pelo motor a combustão – tecnologia que viralatistas chamam de ultrapassada –, abastecido com E100 emite 12,4 t/CO2 em 160 mil quilômetros, e emitiria ainda menos, 9,5 t/CO2 se usasse gás biometano – outro biocombustível em pleno crescimento no Brasil.
Já Toyota faz outra conta que ilustra a eficiência do biocombustível aliado à eletrificação: uma bateria utilizada em um carro elétrico equivale a 53 baterias de um Corolla híbrido flex, ou a seis de um híbrido plug-in. Isto significa que 53 Corolla eletrificados abastecidos com E100 evitam a emissão de 1.590 gramas de CO2 por quilômetro rodado, volume dezessete vezes maior do que os 90 gramas evitados por um único BEV cuja capacidade da bateria equivale a de 53 híbridos.
Meio ou fim do caminho?
A partir destas várias medições e constatações já há quem defenda que o veículo híbrido fechado com motor a etanol não é um caminho intermediário para a eletrificação total, mas sim o fim desta rota, o topo da montanha.
Professor e chefe do laboratório de genômica e bioenergia da Unicamp, Gonçalo Pereira é uma das vozes que tentam transformar o complexo de vira-latas em inteligência competitiva, inclusive lembrando que um vira-lata também é uma espécie híbrida: “No quesito inteligência o que pode ser mais esperto do que um vira-lata amarelo?”
Ao comparar a hibridização dos veículos com a agropecuária, em que espécies híbridas são melhores, mais resistentes e produtivas, o professor Gonçalo faz a seguinte ponderação: “Ouvimos o tempo todo que os híbridos seriam uma alternativa de transição até o BEV, sem perceber que os híbridos são o ponto final, o ponto ideal, o máximo que poderemos alcançar. É exatamente isso que ocorre na agropecuária, por exemplo, em que a produção de alimentos que permite a nossa sobrevivência é feita a partir de híbridos”.
Em que pese o fato de veículos elétricos a bateria, no momento, serem a melhor solução disponível para descarbonizar as emissões de veículos em países da Europa, China e Estados Unidos, existem evidências de que a combinação de eletrificação com biocombustíveis tem enorme potencial de contribuição para conter o aquecimento global – e neste cenário o Brasil tem a vantagem de ser um rodriguiano país híbrido de vira-latas (Portal Carsughi, 26/7/23)