Um grande número de políticos ocidentais teme que a cúpula climática da ONU este ano nos Emirados Árabes Unidos seja muito submissa à indústria de petróleo e gás.
Quando Sheldon Whitehouse, senador democrata dos Estados Unidos por Rhode Island, foi convidado para um jantar no ápice das negociações climáticas da COP27 no Egito, no ano passado, ele esperava encontrar alguns empresários americanos na região.
Em vez disso, para sua consternação, o jantar foi organizado em parte pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos, um poderoso grupo de lobby ligado à indústria de combustíveis fósseis.
“O fato de essa manobra ter sido aplicada na COP em Sharm el-Sheikh deixou um gosto amargo na minha boca”, diz Whitehouse, que durante nove anos fez um discurso semanal no Senado americano alertando sobre o iminente desastre climático.
Assim, quando o país anfitrião da cúpula deste ano, os Emirados Árabes Unidos, nomeou o executivo do petróleo Sultan al-Jaber para o papel central de presidente da COP28, Whitehouse decidiu que já era demais.
Junto com colegas europeus, ele organizou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pedindo que pressionem os EAU a substituir Jaber, que também é o chefe da Companhia Nacional de Petróleo de Abu Dhabi (Adnoc na sigla em inglês). Sua liderança, afirmaram mais de cem signatários na semana passada, corre o risco de “minar as negociações”.
A carta é o exemplo mais drástico até agora de uma reação crescente contra a presidência da COP28 de especialistas em clima, legisladores e grupos humanitários, que temem que as relações da equipe organizadora com a indústria de combustíveis fósseis impeçam avanços na cúpula em novembro próximo.
A nomeação foi “um escândalo” e um “exemplo perfeito de conflito de interesses”, disse Michael Bloss, membro alemão do Parlamento Europeu pelo Partido Verde, que assinou a carta. “É como encarregar a indústria de tabaco de acabar com o tabagismo.”
Os cientistas estão certos de que reduzir a produção e o uso de carvão, petróleo e gás é fundamental para cumprir a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais.
Mas Jaber falou sobre a necessidade de combater as “emissões” de combustíveis fósseis, distinção que os analistas dizem estar fora do manual da indústria e implica o uso da tecnologia de captura de carbono, que não foi comprovada em escala, para prolongar o uso de combustíveis poluentes.
O papel do presidente da COP é fundamental para a direção e os objetivos da cúpula anual, que reúne líderes mundiais, negociadores, empresas e grupos da sociedade civil para buscar consenso sobre como lidar com as mudanças climáticas.
Uma COP28 pouco ambiciosa e que não alcance progresso alimentaria preocupações maiores sobre a eficácia das cúpulas, após críticas sustentadas à COP27 —na qual mais de 600 lobistas de combustíveis fósseis se inscreveram para participar.
O acordo assinado no Egito não incluiu o compromisso de reduzir gradualmente os combustíveis fósseis, apesar do amplo apoio a essa ideia pelos membros da União Europeia e os EUA, após resistência dos países produtores de petróleo, incluindo a Arábia Saudita.
Especialistas dizem que é muito cedo para descartar a eficácia da COP28, mas o tempo está se esgotando para a presidência adquirir a confiança da comunidade internacional e mostrar que tem ambições reais de que ela seja um sucesso.
As presidências da COP devem ser neutras, diz Alden Meyer, associado sênior do grupo de pensadores E3G: “O próximo presidente e sua equipe poderão superar os interesses dos EAU como produtores de combustíveis fósseis? Essa é a verdadeira pergunta”.
‘DUAS SEMANAS PARA SALVAR A COP28’
O anúncio de Jaber como presidente da COP28, feito em janeiro, provocou a revolta imediata de grupos da sociedade civil, que disseram ser tolice esperar que o chefe de uma grande empresa de petróleo defenda uma ação climática ambiciosa. Sob Jaber, o conselho da Adnoc no ano passado acelerou os planos para aumentar sua capacidade de produção.
Os Emirados responderam que Jaber foi fundamental para orientar a adoção de energias renováveis no bloco e lançar a Masdar, empresa de energia limpa de Abu Dhabi, em 2006. Jaber continua a presidir a Masdar, que investiu ou comprometeu US$ 30 bilhões em projetos de energia renovável em 40 países. Mas enquanto a Adnoc, que é acionista da Masdar, comprometeu US$ 150 bilhões em gastos de capital durante cinco anos até 2027, apenas US$ 15 bilhões estão destinados a “soluções de baixo carbono” até 2030.
A nomeação de Jaber foi seguida por uma série de fatos desconfortáveis, incluindo a notícia de que os Emirados convidaram o líder sírio Bashar al-Assad para a conferência e contratado, para ajudar nas comunicações, um conselheiro político do Reino Unido que se opõe a impostos imprevistos sobre empresas de petróleo e gás.
Quanto mais fortes forem as críticas, entretanto, maior a probabilidade de que a equipe da COP28 se reforce e assuma a defensiva, diz uma pessoa com conhecimento do grupo, acrescentando que ficaram “surpresos” com o nível de críticas que receberam.
A equipe da COP28 não comentou se considera os papéis duplos de Jaber um conflito de interesses, mas destacou os 20 anos de trabalho dele no setor de energia renovável, sua experiência em diplomacia climática e seu papel na “descarbonização, transformação e preparação para o futuro da Adnoc”.
Este ano, Jaber “pediu consistentemente ao setor de petróleo e gás que melhore seu jogo, faça mais e mais rápido”, disse ele, e embora “a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis seja inevitável (…) vai levar tempo”.
Os líderes ocidentais apoiaram Jaber, pelo menos em público. O comissário da União Europeia para política verde, Frans Timmermans, e o enviado climático dos EUA, John Kerry, expressaram seu apoio a ele logo após sua nomeação. O diplomata francês Laurence Tubiana, um dos principais arquitetos do Acordo de Paris, escreveu em maio: “Quem melhor que os Emirados Árabes Unidos para demonstrar que faz parte da solução? Os Emirados não podem se dar ao luxo de jogar pelo lado mais seguro”.
Mas ainda não mostrou evidências de ambição significativa. Os presidentes da COP normalmente trabalham para obter apoio para suas ideias ao longo do ano, durante meses de diplomacia cuidadosa.
Esperava-se que o Diálogo Climático de Petersberg em Berlim, em maio, fosse um momento em que a presidência da COP28 delinearia sua visão para a cúpula.
Em vez disso, Jaber disse aos presentes que os combustíveis fósseis “continuariam a desempenhar um papel no futuro previsível” e forneceu poucos detalhes sobre os planos da equipe para a conferência.
Isso preocupou algumas autoridades, que estão olhando para a Conferência de Mudança Climática de Bonn, em junho —mais ou menos na metade do caminho para a COP—, como o próximo grande momento em que um projeto poderá surgir.
Um negociador de um país em desenvolvimento diz que é “chave” que a equipe da COP28 exponha sua visão “antes das férias de verão”.
Alex Scott, líder da E3G para diplomacia climática, é mais direto: “Jaber tem duas semanas para salvar a COP28 (…) Ele precisa chegar a Bonn com um plano de ação. É vital para sua credibilidade que ele enfrente o desafio e não seja visto simplesmente como um defensor dos interesses de petróleo e gás”.
A COP28 disse que o presidente “detalhou as prioridades várias vezes” após uma “turnê de escuta e engajamento” este ano, incluindo tornar o financiamento climático mais disponível e triplicar a capacidade global de energia renovável até 2030.
Um dos principais focos da COP28 será o chamado “balanço global”, quando os países avaliarão o progresso em direção ao corte de emissões. Outra discussão importante será sobre um novo fundo para ajudar a pagar pelos danos causados aos países em desenvolvimento por eventos climáticos extremos. E todos os olhos estarão atentos para ver se o acordo final inclui um compromisso de reduzir gradualmente os combustíveis fósseis.
Mas o foco de Jaber nas emissões de combustíveis fósseis e os planos iniciais da equipe para uma nova aliança de empresas de petróleo e gás comprometidas com a redução de emissões, planos que foram amplamente rotulados como pouco ambiciosos, preocupam os analistas.
O negociador do país em desenvolvimento disse que o foco nas emissões de combustíveis fósseis é “uma distração perigosa”.
Mafalda Duarte, nova chefe do Fundo para o Clima Verde da ONU, diz que Jaber está certo sobre a necessidade de investir em soluções como energia limpa, mas questionou o foco em tecnologias de captura de carbono: “É aqui que entra o ceticismo”.
A necessidade de aumentar as energias renováveis, que Jaber enfatizou, é apenas “um lado da equação”, disse Meyer. “Acho que eles estão tentando evitar um compromisso total com o tipo de redução na produção e consumo de combustíveis fósseis que precisamos ver. Isso vai levar a um verdadeiro confronto em Dubai.”
PARA-RAIOS
Além da questão dos combustíveis fósseis, a presidência terá de navegar por outros desafios difíceis, incluindo como fazer com que grupos da sociedade civil se sintam confortáveis num país que não permite protestos.
A cúpula colocou o histórico de direitos humanos dos EAU sob novo escrutínio. Grupos de defesa pediram a libertação de dezenas de dissidentes detidos desde 2012 por exigirem reformas políticas.
Há também a questão de como os diplomatas ocidentais poderão estar no mesmo lugar que o líder sírio e seus representantes, caso decidam comparecer. O convite, amplamente criticado, foi visto como parte de um movimento dos países da região para melhorar as relações com um regime sob sanções da ONU e outros por seu uso de armas químicas e outros supostos crimes de guerra e atos de brutalidade.
A maneira como a equipe da COP28 lida com os interesses concorrentes na cúpula será o melhor teste de seu compromisso com o combate às mudanças climáticas, dizem os analistas —especialmente porque a influência da potência regional, a Arábia Saudita, deve pesar fortemente sobre o anfitrião.
Mas uma COP organizada por um petroestado sempre atrairia um escrutínio particular, dizem os especialistas. “Não importa quem eles indicassem como presidente, haveria uma percepção de conflito”, diz Meyer. Jaber foi “um para-raios de uma crítica muito mais ampla do sistema”.
Nos bastidores, o chefe do clima da ONU, Simon Stiell, está trabalhando para reformar o processo da COP para torná-lo mais transparente. Grupos da sociedade civil esperam que as mudanças incluam uma nova política e regras de conflito de interesses que exijam que os participantes da COP divulguem o lobby relacionado ao clima.
Mas essas ideias existem há anos, com pouco progresso feito, supostamente como resultado da resistência de países como os EUA e a Austrália.
Apesar do desconforto com a hospedagem dos Emirados Árabes Unidos em alguns setores, nenhum país ainda está falando publicamente em boicotar a cúpula. Representantes de países vulneráveis ao clima disseram que é importante que eles estejam presentes.
“Estamos ansiosos para estar lá”, disse o embaixador Samuelu Laloniu, enviado especial de Tuvalu, uma ilha de baixa altitude do Pacífico em risco devido ao aumento do nível do mar. “Nossa ausência da discussão não servirá aos interesses de nossas ilhas.”
O embaixador Fatumanava-o-Upolu III Pa’olelei Luteru, presidente samoano da Aliança dos Pequenos Estados Insulares, disse que os países devem comparecer à cúpula para ter “uma conversa madura e produtiva”.
“Esta é uma questão que exige que todos trabalhemos juntos”, disse ele. “Às vezes, talvez seja mais importante envolver-se com aqueles que não necessariamente compartilham sua perspectiva.”
Mas isso não significa ignorar as principais questões em jogo, acrescenta Laloniu. “A única maneira de manter viva a meta [de 1,5oC] é resolver o problema na fonte”, e os combustíveis fósseis são “os culpados aqui”.
Se os líderes ocidentais não fizerem mais nada, diz o senador democrata Whitehouse, eles devem manter um escrutínio rigoroso dos Emirados Árabes Unidos até novembro.
“O passo prudente”, disse ele, é aumentar a pressão “para tentar criar uma transparência e um ambiente em que eles não possam pegar leve com a indústria de combustíveis fósseis” (Financial Times, 3/6/23)