Apoiada por empresas, ideia pode levar a ilusão ou adiamento de reduções reais de emissões; enviado do clima dos EUA defende que financiamento privado é essencial.
O enviado especial para o clima dos EUA, John Kerry, anunciou na COP27 (conferência do clima da ONU), nesta quarta-feira (9), data classificada como o “dia das finanças”, um plano —que tem sido criticado— de compensação de carbono. A iniciativa ligaria empresas privadas americanas a ações de transição energética em países em desenvolvimento.
Kerry lançou, aos presentes no espaço americano na COP27, em Sharm el-Sheik, e ao resto da conferência, uma ideia, porém, sem muito detalhamento. Ele mesmo fez questão de deixar isso claro ao afirmar que há abertura para ouvir os diversos atores que podem ser afetados pelo projeto.
“A intenção é ter a estratégia em funcionamento já na COP28”, disse o enviado, que chamou o plano de Energy Transition Accelerator (acelerador de transição de energia).
A ideia é, basicamente, a seguinte. Imagine uma usina de produção energética à base de combustíveis fósseis. Ela terá um tanto quantificável de emissões em um determinado período. Mas, se essa usina deixar de existir e uma fonte de energia sustentável —como a solar, por exemplo— a substituir, tais emissões deixarão de ser feitas. Daí está criado o crédito de carbono.
No caso da ideia de Kerry, o dinheiro da compra dos créditos de carbono de alta qualidade, segundo explicou, seria direcionado diretamente para financiar a transição energética dos países em desenvolvimento. O representante americano também destacou que os créditos não poderiam ser comprados por empresas do setor de combustíveis fósseis.
Embora a proposta ainda não tenha sido oficializada, ela foi extensamente criticada por especialistas de diversos países e organizações.
Uma das críticas refere-se à intenção de propor um preço fixo pelas compras antecipadas de créditos de carbono de planos de transição energética. Caso o preço fixo seja muito baixo, ele cria uma consequência danosa: os créditos mais baratos no mercado de carbono são, em geral, os que menos têm confiabilidade.
“Os EUA nos têm em seu carrossel de distração climática. Em um minuto eles estão insistindo que não vão ‘obstruir’ o progresso em questões-chave na COP27, e no minuto seguinte eles estão lançando esquemas arriscados, não comprovados e cientificamente infundados que podem nem mesmo levar a reduções reais de emissões, muito menos fornecer o tipo e forma de financiamento que serão realmente necessários para enfrentar a crise climática”, afirmou a diretora de clima e política pública da Corporate Accountability, Rachel Rose Jackson.
Para a diretora de clima do WRI (World Resources Institute) na Índia, Ulka Kelkar, “o que os países em desenvolvimento precisam é de previsão de financiamento, não de mercados de compensação”.
“A iniciativa proposta não pode compensar o fracasso dos Estados Unidos em fornecer seu quinhão de financiamento climático —estimado em US$ 40 bilhões da meta global não alcançada de US$ 100 bilhões por ano”, afirma ela, citando o valor anual prometido por países ricos desde 2009.
O pesquisador Navroz Dubash, um dos autores que coordenou o último relatório do painel de clima da ONU, avalia que “o anúncio de Kerry pode resolver um problema de narrativa política —contar uma história sobre desbloqueio de finanças—, mas é altamente improvável que realmente consiga uma movimentação financeira suficiente e previsível”.
“Na melhor das hipóteses, levará a fluxos limitados e imprevisíveis; na pior das hipóteses, poderia minar a máquina de Paris”, completa Dubash.
Além disso, apesar de a proposta sugerir que a remuneração dos créditos de carbono pode incentivar a transição energética, a meta climática dos Estados Unidos no Acordo de Paris (a chamada NDC, sigla em inglês para contribuição nacionalmente determinada) afirma que o país não pretende comprar créditos.
“Neste momento, os Estados Unidos não pretendem usar a cooperação voluntária usando abordagens cooperativas mencionadas no Artigo 6.2 ou o mecanismo referido no Artigo 6.4 para atingir sua meta”, diz o documento americano submetido à ONU, fazendo referência ao artigo 6, que trata do mercado de carbono.
Os EUA podem, contudo, se interessar em vender créditos de carbono da sua transição energética, em vez de comprar de países em desenvolvimento, sugerem análises de negociadores de países em desenvolvimento.
“Isso não é o crédito da sua avó e do seu avô”, defendeu Kerry nesta quarta. “Não devemos deixar que os erros do passado nos impeçam de aplicar uma ferramenta poderosa para guiar o capital privado para onde ele é mais necessário”, disse, referindo-se especialmente a práticas de greenwashing.
Segundo o enviado americano, os créditos seriam somente uma ferramenta suplementar às políticas de reduções de emissões das empresas americanas para atingir a neutralidade climática até 2050.
Ele afirmou, no entanto, que poderia haver uma possibilidade (que ele destacou como limitada) de as companhias usarem partes desses créditos para suas metas de curto prazo —ele citou os anos de 2030 e 2035.
Ou seja, a ideia aponta para um cenário em que empresas comprariam créditos que as deixariam acima de suas metas.
Durante sua apresentação, Kerry ressaltou que são necessários investimentos de US$ 2,5 trilhões a 4,6 trilhões por ano, daqui até 2050, para manter o 1,5°C vivo —o que foi mote da COP26.
“Nenhum governo no mundo tem dinheiro o suficiente para fazer esse trabalho. Então por que continuamos fingindo?”, questionou.
Também foram apresentados no evento países e empresas já interessados na ideia —as companhias são o Bank of America, a Microsoft, a PepsiCo, e o Standard Chartered Bank. Chile e Nigéria são as nações que mostram incentivo (Folha de S.Paulo, 10/11/22)