Por Natalie Unterstell e Marcello Brito
Ativo ambiental não garante, de imediato, estar ao lado das potências globais.
Nossa sociedade assiste a uma ruptura da ordem internacional que se instala com a promessa de um novo desenho geopolítico, talvez só vista no pós-Segunda Guerra. Não se trata de uma pseudoluta entre modelos de centro-direita e centro-esquerda. O que assistimos é a um embate entre o movimento pela manutenção do protagonismo, no caso dos Estados Unidos, versus a emergência da China. O que acontecerá se os demais países tiverem que optar por uma dessas redes de poder?
Sacrifícios tendem a ocorrer em primeiro lugar com aqueles que não fazem parte dos “clubes dos acordos multilaterais” —justamente o nosso caso. A oeste, a Parceria Transpacífico engloba 30% da população e 40% do PIB mundiais. A leste, a Parceria Econômica Regional Abrangente reúne 40% da população e 30% do PIB e contará com 60% da classe média consumidora em 2030. O Brasil está fora de todos esses movimentos, à exceção do Mercosul.
O que então poderá nos manter como fornecedor preferencial dos principais blocos? Em primeiro lugar, nossa produção de alimentos, que atravessa todos esses arranjos, por sua interdependência. Se a China é nosso grande consumidor de soja, é a Europa nosso maior mercado de farelo. Essa relação também existe no mercado de proteínas animais. Se optarmos pelo clube geopolítico chinês, algumas cadeias crescerão muito, enquanto outras tendem a quebrar. O mesmo ocorrerá se escolhermos o clube americano. Então, sob o ponto de vista econômico, não há bala de prata em relação ao alinhamento a um polo ou a outro.
Mas há um trunfo praticamente só nosso e que temos nos esmerado em destruir nos últimos anos: nossa potência verde. Para quem acredita que nossos ativos ambientais nos conferem, automaticamente, um lugar entre as potências globais, cabe esclarecer que não. Essas credenciais podem nos colocar —e nos tirar— do jogo político regional e mundial a depender do que fizermos daqui em diante. Hoje, o Acordo Mercosul-União Europeia está suspenso, e a OCDE, que não tem tradição em agenda verde, nos pede explicações sobre desmatamento tanto na seara agrícola quanto ambiental no processo de acessão. Essa é claramente não apenas uma agenda ambiental à parte, mas inteiramente conectada à geopolítica atual.
O alto desmatamento e o desalinhamento ao Acordo de Paris são flagrantes no Brasil, mas também podem ser superados. Se corrigirmos o sinal de tolerância com ilegalidades e de baixa integridade das metas climáticas, podemos recuperar nossa credibilidade. E, mais que rompermos o isolamento, é preciso assumir uma postura proativa em relação aos novos padrões verdes.
Mesmo quando baixamos o desmatamento ao mínimo histórico, na década passada, não usamos isso como passaporte de relações internacionais novas e fortes. A agenda de parcerias com outros países tropicais nunca se aprofundou. Nós nos proclamamos “líderes”, mas quem foram ou são nossos seguidores? Já passou o tempo em que nossa diplomacia se contentou em deixar a palavra “floresta” fora dos acordos internacionais —é preciso que o Brasil a inclua na geopolítica, de modo a abrir mais espaço para modelar padrões em nosso favor.
Podemos atrair mais investimentos e parcerias com base em nossas florestas, biodiversidade e agricultura? Acreditamos que sim. A Amazônia livre da grilagem de terras, do desmatamento e do garimpo ilegal nos traria um carimbo de eficiência climática global única e invejável. Somando-se a isso uma matriz energética 100% renovável, infraestrutura carbono-zero e conservação da natureza garantida por lei em terras privadas e públicas, o Brasil terá capacidade de furar qualquer bolha geopolítica. Na “Uma Agenda Inadiável”, do Derrubando Muros, propomos essas e outras medidas para promover uma “tripla revolução”: de conhecimento, de produção e de gestão e governança.
As candidaturas nas eleições deste ano falaram pouco a respeito dos desafios e oportunidades aqui expostos. Se nossa riqueza socioambiental é passaporte para melhores relações com o resto do mundo, precisamos de compromissos políticos à altura (Natalie Unterstell é socioambientalista, é presidente do Instituto Talanoa e Marcello Brito
agroempresário e professor associado na Fundação Dom Cabral; Folha de S.Paulo, 12/10/22)