Por Ricardo Tavares
Processos em tribunal contra empresas que violem metas associadas às alterações climáticas devem crescer no Brasil.
Ao abrir uma filial de uma empresa no Brasil, um conhecido banqueiro brasileiro sobreavisou-me: “poupe em tudo, menos nos advogados”. A judicialização das atividades corporativas, juntamente com a hiperburocratização e a tributação visigótica, são o tripé cambaleante onde assentam as empresas brasileiras.
Mais de 60 milhões de ações envolvendo empresas tramitam no judiciário brasileiro, sobretudo de cunho trabalhista, civil (contratos e indenizações) e relacionadas ao Direito do Consumidor. Um CEO brasileiro tem que conhecer tão bem o chão da fábrica quanto o chão do fórum da sua comarca.
É um cenário que se agudizará com a litigância climática, uma ferramenta a ser usada pela sociedade civil para obter a responsabilização das empresas e dos governos na agenda do clima. Ainda que as primeiras ações judiciais datem da década de 90 na Austrália e EUA, foi com a vitória histórica em 2021 de um grupo ambiental contra a Shell –em que um tribunal holandês ordenou que a empresa estabelecesse o corte de 45% das suas emissões de carbono até 2030– que se abriu um novo capítulo. Foi a primeira vez que o poder judicial de um país obrigou uma empresa a se alinhar ao Acordo de Paris.
No dia de hoje, segundo a LSE, existem 548 casos em curso em tribunal contra empresas ou entidades públicas por violações associadas às alterações climáticas. No Brasil são 18, incluindo uma ação cautelar de quatro associações não governamentais –Agapan, Ingá, Coonaterra-Bionatur e Ceppa– contra uma empresa de mineração por violação das regras de licenciamento ambiental “frente à grave situação de emergência climática”.
Mas no país ainda não há registo de casos semelhantes ao da Shell. E falta ativismo jurídico por parte da sociedade civil. Em Portugal, a semana passada, um grupo de 12 jovens, composto principalmente por advogados recém-graduados e estudantes de Direito, criou a associação Último Recurso. Publicamente, apresentaram como sua missão colocar o Estado português e a empresa de energia Galp em tribunal, acusando-os de serem os principais responsáveis pela crise climática no país.
Em declarações à coluna, a direção da associação salienta que a base legal dos processos deriva “da responsabilidade civil (por violação de direitos subjetivos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos), dos deveres fiduciários, dos riscos financeiros e dos direitos humanos”. Ou seja, a base legal é ampla e multidisciplinar. A questão dos direitos humanos ocupa um espaço importante porque a ONU reconheceu há poucos meses que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano fundamental.
Mas é mais fácil um trabalhador processar uma empresa pela simples falta de pagamento de horas extraordinárias do que uma associação processar uma corporação por contribuir para o aquecimento global e operar a crédito no planeta, afetando milhares. A associação espera “resistência dos tribunais” dada a “propensão algo conservadora das decisões jurisdicionais”, acrescida pela “falta de preparação da magistratura portuguesa para lidar com quesitos ambientais e climáticos,” afirmam Mariana Gomes (presidente), Beatriz Cunha (vice-presidente) e Pedro Marques (tesoureiro), por email.
Tanto no Brasil paulista quanto no Portugal lisboeta, o mundo corporativo opera em espaços de confiança e camaradagem. Os jovens advogados portugueses alertam para o fato de que muitas das empresas carbónicas “estão profundamente inseridas no status quo, cuja sustentabilidade é reconhecida por estruturas e organizações também integradas nesse status quo.” Para superar a crise climática é, por isso, necessário “deixar para trás o business as usual.”
Jovens portugueses têm pedigree nesta área. Em 2020, quatro crianças e dois adolescentes, com idades entre os 8 e os 21 anos, foram os autores de uma ação que deu entrada no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, contra 33 Estados, incluindo o português, pela falta de ações concretas para reduzirem as emissões de gases com efeitos de estufa.
O ordenamento jurídico brasileiro, à semelhança do europeu, também permite a litigância climática.
A Lei da Política Nacional da Mudança do Clima (lei 12.187/09); o Acordo de Paris, ratificado pelo Brasil em setembro de 2016; o entendimento do STF sobre o alcance jurídico do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, que determina que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, cabendo à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; o Código Florestal Brasileiro; e uma constelação de regras associadas ao Direito Ambiental, ao Direito do Consumidor e à Responsabilidade Civil instigam as empresas e o poder público a cumprirem objetivos de mitigação ou adaptação climática.
Apesar do papel indutor de organizações internacionais como a ClientEarth ou a Global Action Network (Glan), levar a emergência climática para dentro dos tribunais acarreta custos difíceis de suportar por jovens juristas ativistas. A própria Último Recurso não tem financiamento externo e irá contatar “fundações, organizações e doadores privados” para angariar recursos.
Mas que doadores privados? Se a maior parte dos filantropos brasileiros ou portugueses são empresários, não há o risco de haver conflitos de interesse? Não poderá um empresário, pelo charme da filantropia, ser tentado a financiar ações contra a concorrência? E poderão recursos públicos da União Europeia, o maior financiador da agenda climática do mundo, ser disponibilizados para a sociedade civil processar governos, incluindo os próprios membros da UE?
O caminho será árduo, mas é imparável. Se nos últimos anos o STF tem sido exortado a interferir no poder executivo para evitar calamidades políticas, também serão os tribunais a estimularem os executivos de empresas a cumprirem regras para evitarmos catástrofes ambientais (Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group; professor catedrático convidado na NOVA School of Business and Economics, em Portugal. Nomeado Young Global Leader pelo Fórum Econômico Mundial, em 2017; Folha de S.Paulo, 28/4/22)