Por Marcelo Toledo
- Programa criado na ditadura transformou o setor e agora busca expansão para novos meios de transporte
- Vale e empresas de aviação estudam uso para reduzir emissões; tecnologia é aliada para atender demanda sem aumentar área

Quando o Fiat 147 movido a etanol foi lançado com euforia em 1979, talvez poucos do setor canavieiro imaginassem que a história iniciada quatro anos antes, com a criação do Proálcool, chegaria aos 50 anos projetando abastecer trens e aviões.
O programa que é apontado pelo hoje chamado setor sucroenergético como transformador para a cadeia da cana-de-açúcar e que deu ao Brasil liderança mundial no segmento, porém, percorreu uma trajetória marcada por muitos percalços, discussões e problemas ambientais até chegar à fase em que afirma se aproveitar “de tudo” o que a planta possa produzir.
O documento que criou o Programa Nacional do Álcool foi assinado por Ernesto Geisel (1974-79), o penúltimo dos generais presidentes na ditadura militar, e publicado em 14 de novembro de 1975, com o objetivo de ser uma alternativa à crise do petróleo deflagrada dois anos antes —que fez o preço do barril subir de forma acelerada de US$ 3,50 para US$ 13 no intervalo de um ano.
É verdade que o país já ensaiava o uso do álcool —a expressão etanol foi adotada décadas depois— misturado à gasolina, porém com baixos percentuais (hoje está em 30%). Por isso, dotar os carros somente do combustível derivado da cana foi considerado uma revolução tecnológica, na avaliação de Maurilio Biagi Filho, um dos signatários do Proálcool. Além de reduzir a dependência do petróleo, poderia tornar o país autossuficiente no setor.
“O Proálcool significou uma era. Conseguimos demonstrar nossa capacidade, nossa criatividade, com um combustível substituto. Nós não criamos nada, o álcool existia há muito tempo, mas conseguimos mostrar para o mundo, e ninguém teve essa iniciativa, que existem energias renováveis, alternativas”, afirmou Biagi.
Com moagem de cana equilibrada nos últimos anos e aumento na produção do etanol, o setor busca agora entrar em duas outras áreas do transporte: a aviação e as ferrovias.
Nos trilhos, a Vale e a Wabtec Corporation, fabricante de locomotivas, fizeram parceria para desenvolver estudos sobre o uso de etanol nos trens que percorrem a Estrada de Ferro Vitória a Minas.
A proposta, hoje na fase de laboratório, é a de chegar a um motor flex (dualfuel), que possa continuar usando o diesel, mais poluente, mas também permita uma mistura do combustível fóssil com o etanol, derivado da cana e do milho.
“Temos testes que são promissores, feitos ainda em nível de bancada, ainda não são testes percorrendo a ferrovia, mas que nos levam à substituição de até 50% do diesel, utilizando etanol”, disse Carlos Medeiros, vice-presidente de operações da Vale. A expectativa é que os testes na ferrovia comecem em 2028.
Já na aviação, o combustível de aviação sustentável (SAF, na sigla em inglês) é alvo de discussões nos últimos anos e, se o etanol for envolvido firmemente no setor, a expectativa é de grandes avanços para a cadeia sucroenergética.
A China, por exemplo, já debateu o assunto com o governo brasileiro. O país asiático tem quer chegar a 3% de mistura de SAF em seus voos em cinco anos. Isso significaria produzir 46 milhões de toneladas do combustível por ano.
A necessidade de buscar a descarbonização nas operações faz com que o etanol brasileiro consiga um protagonismo global, na avaliação do presidente da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), Evandro Gussi.
Na COP30, em Belém, a associação participou do “compromisso de Belém pelos combustíveis sustentáveis”, programa que tem como objetivo dar apoio para pelo menos quadruplicar o uso de combustíveis sustentáveis até 2035.
Para isso, hidrogênio, biogás, biocombustíveis e sintéticos precisam, segundo o governo federal, ser produzidos em escala e a preços competitivos. O pacto foi assinado por 19 países —além do Brasil, Canadá, Índia, Itália, Japão e México estão entre os signatários—, mas deve crescer, avalia o executivo.
“Esse compromisso que os países assumem de quadruplicar é porque eles percebem que os biocombustíveis são uma solução rápida, eficaz, barata de descarbonização para o Brasil e o mundo. Isso faz com que o etanol esteja sendo pensado como combustível marítimo, como matéria-prima para combustível sustentável de aviação”, disse.
Embora o foco do setor seja o promissor SAF, o etanol já está em uso na aviação brasileira há mais de duas décadas, desde que a Embraer lançou em 2004 o avião agrícola Ipanema, que tem cerca de 60% de participação no segmento e que vendeu mais de 180 unidades em feiras agrícolas nos últimos três anos.
Para atender o possível crescimento na demanda nos próximos anos, é necessário tecnologia, já que a área plantada está estável no Centro-Sul brasileiro, que concentra os principais estados produtores.
Órgãos como o CTC (Centro de Tecnologia Canavieira), com sede em Piracicaba, atuam no desenvolvimento de plantas mais produtivas.
Em 2018, obteve aprovação para uso de duas variedades de cana geneticamente modificadas e, atualmente, trabalha no desenvolvimento de um novo sistema de plantio com a utilização de sementes sintéticas. Elas, quando em uso —não há prazo definido—, devem liberar áreas hoje usadas para o plantio de mudas, além de aumentar a eficiência operacional e reduzir a pegada de carbono.
O setor enfrentou nessa trajetória de 50 anos crise de confiança, nos anos 80, e queixas ambientais e trabalhistas sobre queimadas e excesso de esforço de boias-frias no campo.
Atualmente, dos 37,7 milhões de veículos leves do país, 32,1 milhões, ou 85,1%, são flex, mas o etanol que abastece os veículos não é mais só produzido a partir da cana-de-açúcar e hoje enfrenta a concorrência do combustível derivado do milho (Folha, 15/11/25)
Proálcool, 50, enfrentou resistência dentro do governo de Ernesto Geisel

Por Marcelo Toledo
- Iniciativa começou com o Fiat 147 em 1979 e evoluiu para a tecnologia flex 24 anos depois
- Trajetória de meio século do programa teve obstáculos como queimadas e condições de trabalho
O projeto que originou o Proálcool, que completa 50 anos nesta sexta-feira (14), foi desenhado pelo usineiro Cícero Junqueira Franco (1931-2016), em parceria com Lamartine Navarro Junior, e se chamava “Fotossíntese como fonte de energia”. Foram quatro anos desde o lançamento até a chegada do primeiro veículo movido exclusivamente pelo combustível derivado da cana-de-açúcar às ruas.
O programa é apontado como transformador para a cadeia sucroenergética nacional, que nem tinha esse nome à época, e enfrentou resistências inclusive dentro do próprio governo, conforme discurso recente do ministro de Minas e Energia daquele ano, Shigeaki Ueki.
Ele disse no último dia 20, em encontro da consultoria Datagro para celebrar as cinco décadas do programa, que a proposta teve dificuldades em alas do governo de Ernesto Geisel, que governou o país entre 1974 e 1979.
Um setor queria estudos para definir a região mais adequada para o plantio de cana-de-açúcar no país, de acordo com ele, e dentro do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) houve quem avaliasse que o “álcool era um insumo que atrapalhava”, dado os preços mais remuneradores do açúcar.
“Eu falei com o presidente Geisel ‘eu tenho o apoio dos empresários, mas dentro do governo eu tenho oposição’. Aí o presidente disse que convocaria uma reunião […] E esse [lançamento em] 14 de novembro de 1975 foi por decisão do presidente Geisel”, disse para a plateia formada por usineiros e executivos do setor sucroenergético.
A iniciativa da Fiat ao lançar o 147 movido a álcool em julho de 1979 logo foi seguida por Volks, GM e Ford, e o sucesso foi imediato, avalia Maurilio Biagi Filho, um dos signatários do Proálcool.
“Todo mundo comprava carro a álcool. O percentual que não comprava era muito pequeno, e não é que não comprava, é que não tinha [carro] também para todo mundo.”
Porém, o primeiro grande choque vivido pelo setor foi registrado em 1989, quando faltou combustível no mercado –cenário que Biagi refuta. A situação causou uma crise de confiança nos consumidores e a fuga dos veículos movidos a etanol, situação que efetivamente só mudou em 2003, quando a Volks apresentou o primeiro veículo flex, um Gol 1.6 que podia ser abastecido com etanol ou gasolina, em qualquer proporção.
As vendas dispararam e o boom causou aumento acelerado de usinas, com 55 novas plantas entre 2007 e 2009, gerou a mudança nos postos do nome do produto de álcool para etanol e fez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chamar os usineiros de “heróis nacionais e mundiais”.
O crescimento ocorria em meio a outros problemas, como a prática das queimadas de cana, alvo de ações por danos ambientais, e denúncias de jornadas excessivas no campo, com ao menos 22 mortes suspeitas de terem ocorrido por excesso de esforço no campo entre 2004 e 2008.
As queimadas foram eliminadas gradativamente a partir da assinatura de um protocolo agroambiental com o governo paulista em 2007, e a acelerada mecanização no campo também fez com que boias-frias deixassem de cortar até 20 toneladas diárias de cana.
“Lá, décadas e décadas atrás, a vinhaça chegou a ser desperdiçada em rios. Ou seja, era ruim para a natureza e o setor estava jogando dinheiro fora. Hoje a vinhaça é utilizada como biofertilizante, tem feito biogás, biometano, com vinhaça, ou seja, são inúmeras as inovações tecnológicas”, diz Evandro Gussi, presidente da Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia), para quem o setor tem uma “história de evolução”.
O executivo afirma ainda que a mecanização na colheita da cana permitiu a requalificação profissional de mais de 400 mil colaboradores que estavam no corte manual e se transformaram em tratoristas, operadores de máquina, mecânicos, eletricistas e gestores.
CANA E MILHO
Hoje, dos 37,7 milhões de veículos leves do país, 32,1 milhões, ou 85,1%, são flex, mas o etanol que abastece os veículos não é mais só produzido a partir da cana-de-açúcar.
Em outubro, 255 usinas estavam em atividade no Centro-Sul, das quais 234 processando cana, 10 fabricando etanol a partir do milho e 11 usinas flex. Segundo a Unica, no acumulado desde o início da safra, em abril, a produção de etanol de milho somou 4,85 bilhões de litros, 17,23% mais que no mesmo período do ano passado.
A consultoria Datagro projeta que as atuais usinas de etanol de milho, somadas às que estão projetadas ou já em construção, elevarão a capacidade de produção para 24,7 bilhões de litros em nove anos. O movimento de alta, especialmente no Centro-Oeste brasileiro, coincide com a estagnação na produção prevista para as plantas que utilizam cana.
Além do etanol, a partir da cana é possível fabricar açúcar, bioeletricidade (a partir da queima do bagaço e da palha) e plástico biodegradável, entre outros subprodutos (Folha, 15/11/25)









