A pressão dos países ricos pela alteração das regras sobre quem paga a conta do financiamento climático, rebaixando a importância do peso do histórico de emissões de gases de efeito estufa, pode aprofundar ainda mais as desigualdades no mundo em desenvolvimento.
A avaliação é da economista Laura Carvalho, diretora global de prosperidade econômica e climática na Open Society Foundations, organização fundada pelo bilionário George Soros que financia projetos voltados para direitos humanos, justiça, democracia e equidade.
A definição de uma nova meta de financiamento climático, mais conhecida pela sigla em inglês NCQG (novo objetivo coletivo quantificado), é o principal ponto das negociações da COP29 (conferência das Nações Unidas sobre o clima) em andamento em Baku, no Azerbaijão, até 22 de novembro.
Na Convenção do Clima, de 1992, foi acordado que não cabe aos emergentes e às economias em desenvolvimento pagar essa conta. Os países ricos, que conseguiram alavancar o desenvolvimento de suas economias com base especialmente nas suas maiores emissores ao longo dos últimos dois séculos, são apontados como os responsáveis por financiar as iniciativas de transição energética, adaptação às mudanças climáticas e o combate a seus efeitos das nações mais pobres.
Durante a COP29, os negociadores do mundo desenvolvido tentam mudar as regras do jogo. Com base em novos critérios, pretendem aumentar a base de doadores. Sobretudo, pressionam pela inclusão da China, atual líder nas emissões de CO2, e de outros emergentes, como o próprio Brasil.
Ambas as nações atuam no G77+China, um grupo que rechaça enfaticamente essa possibilidade.
Segundo Carvalho, combinações de critérios podem ser utilizados na questão do financiamento. Mas ela sublinha que “a responsabilidade histórica pelas emissões” deve ser das nações mais ricas. Do contrário, os países em desenvolvimento seriam colocados na mesma escala de responsabilidade daqueles que se industrializaram muito antes.
“A mudança do critério das emissões históricas, que foi bem estabelecido, traz muitos riscos. Tirar a responsabilidade dos emissores históricos e colocar como critério a renda per capita de cada país, por exemplo, reconfigura os princípios básicos que prevaleceram na Convenção do Clima”, defende.
“Sair desses princípios, ainda mais em um momento de descrença no multilateralismo, alimenta riscos sobre o compromisso dos países ricos com o financiamento ao enfrentamento das mudanças climáticas no mundo”, completa Laura Carvalho.
Para a economista, um dos grandes riscos seria a “inação climática ainda maior” no chamado Sul Global, que engloba países em desenvolvimento e emergentes de vários pontos do mundo.
Doações de governos
A diretora global de prosperidade econômica e climática na Open Society Foundations defende também a a garantia de que os recursos para o financiamento do clima sejam, principalmente, oriundos de doações dos governos.
Levantamentos feitos pela OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e por outras instituições mostram que a maior parcela da meta atual de financiamento —de US$ 100 bilhões anuais até 2025— tem sido concedida por meio de empréstimos, muitas vezes com juros de mercado. Tal situação tende a contribuir para o aumento das já elevadas dívidas externas dos países mais pobres.
“Não será possível chegar a um sistema justo se não houver dinheiro público dos países ricos para transição no Sul Global”, considera Carvalho. “As soluções financeiras de mercado não têm conseguido entregar aquilo que os países em desenvolvimento de fato precisam, que são recursos flexíveis a taxas de juros baixas, para adotar soluções sustentáveis e implementar suas agendas.”
Mais de US$ 1 trilhão
Além de manter as regras da Convenção do Clima, também é crucial haver aumento expressivo do volume de recursos disponibilizados, avalia a especialista. Esse ponto, aliás, tem sido um dos principais desafios nas atuais negociações das delegações na COP29.
A proposta atual para as novas metas climáticas —enxugada de 35 para 33 páginas ao final de quatro dias de negociações em Baku— mostra que os países desenvolvidos querem um pequeno aumento em relação aos valores atuais. Nações em desenvolvimento, porém, chegaram pleitear US$ 2 trilhões anuais. O G77+China, do qual o Brasil faz parte, pede financiamento público de US$ 1,3 trilhão ao ano.
Para Laura Carvalho, as economias emergentes e em desenvolvimento podem contribuir de diferentes maneiras, desde que não obrigatórias. A economista destaca, por exemplo, as contribuições voluntárias feitas pela China, que tem financiado diversas iniciativas climáticas no mundo, mesmo sem um compromisso formal.
O Brasil, que hoje ocupa espaços de protagonismo na diplomacia global, como a presidência do G20, o grupo das 20 maiores economias do mundo, e liderança da COP30 , programada para Belém em 2025, também poderia usar essas plataformas para alavancar recursos mais ambiciosos para a transição climática.
“O Brasil tem a oportunidade de se colocar como uma liderança do Sul Global e de promover a cooperação tão necessária entre países em desenvolvimento, fazendo avançar agendas que coloquem a transição climática e o desenvolvimento socioeconômico lado a lado”, afirmou.
Nova ordem, velho sistema
Além da questão dos recursos, a economista também considera essencial o compartilhamento dos ganhos econômicos a serem aferidos pela transição climática. Atualmente, países como a China, os Estados Unidos e membros da União Europeia têm desenvolvido e implementado tecnologias verdes e recolhido os benefícios dessas inovações para suas economias, inclusive na geração de empregos.
“No Sul Global, essa não é a realidade da maior parte dos países, que hoje arcam com os custos dessa transição climática”, afirmou. Para Carvalho, os países em desenvolvimento têm de aproveitar essas mesmas oportunidades para participar da nova ordem global e encontrar seus espaços nas novas cadeias globais de valores.
“Precisamos evitar a reprodução do sistema econômico em que os países ricos desenvolvem as tecnologias para fabricar bens de maior valor agregado, enquanto os mais pobres exportam para eles as novas commodities verdes, necessárias para as baterias, os painéis solares e as inovações para a transição energética” (Folha, 16/11/24)