Obsessão do país em evitar novas dívidas gerou atrasos na infraestrutura e dúvidas sobre a transição energética. Mas Berlim criou novo mecanismo de financiamento que pode se tornar um modelo.
Pode ser apenas um pequeno detalhe. Mas esse pequeno detalhe pode conseguir fazer o que o governo alemão não foi capaz na última década: investir em larga escala em infraestrutura.
Desde 2011, o chamado “freio da dívida” do país impõe limites rígidos ao montante de novos empréstimos que o governo alemão pode fazer por ano. Consagrado na Constituição alemã em resposta à crise da dívida da zona do euro em 2010, o limite para o aumento excessivo da dívida soberana, no entanto, restringiu os investimentos em escolas, pontes e na transição para energia renovável.
A lei é controversa mesmo dentro da coalizão de governo alemão, entre social-democratas, liberais e verdes, embora a aliança de três partidos tenha conseguido que o Parlamento suspendesse temporariamente a regra durante a pandemia de covid-19 e a guerra da Rússia na Ucrânia.
Mas o ministro alemão da Economia, Robert Habeck, acaba de apresentar um esquema para contornar a regra do freio da dívida, que, de outra forma, só poderia ser desfeita com a ajuda da oposição, que se recusa a entrar no jogo.
Na sexta-feira, um novo mecanismo para financiar os cerca de 20 bilhões de euros (R$ 110 bilhões) necessários para a rede de tubulações de hidrogênio da Alemanha passou pelo último obstáculo legislativo na câmara alta do Parlamento alemão, o Bundesrat.
Financiamento inicial
De acordo com a nova regulamentação, o governo pode lançar um investimento semente para um fundo destinado à construção da rede de hidrogênio. A rede em si será operada por um empreendimento privado de empresas que cobrará os usuários da rede de hidrogênio taxas que devem ser, no total, altas o suficiente para cobrir os custos de construção até 2055.
De acordo com especialistas, o plano está em conformidade com o freio da dívida porque o governo espera lucrar com o investimento. O financiamento do esquema deve ser fornecido pelo banco de investimento público alemão KfW e não pelo próprio governo federal.
O novo fundo inclui uma chamada “conta de amortização”, um tipo de conta bancária com opção de saque a descoberto que permite ao governo equilibrar a receita das taxas pagas pelos usuários com os custos da construção da rede.
Jens Südekum, economista da Universidade de Düsseldorf, diz que o novo mecanismo permitirá que o governo subsidie as sobretaxas iniciais de uso da rede, tornando “mais barato para os clientes aderirem”. Nos estágios posteriores do financiamento, “as taxas de uso seriam mais altas, visando recuperar os subsídios iniciais”, disse ele à DW.
As autoridades do setor receberam bem o novo mecanismo de financiamento, afirmando que ele distribuiria os custos ao longo de décadas e, ao mesmo tempo, evitaria altas taxas de rede de hidrogênio para os clientes.
Quem assume os riscos?
A Alemanha planeja importar grandes volumes do hidrogênio que precisa para transformar setores como a indústria e o transporte ferroviário e aéreo. Os preços, no entanto, dependerão dos custos de produção em países como a Namíbia ou México.
Philip Schnaars, chefe de pesquisa de regulamentação do Instituto de Economia de Energia de Colônia, enfatiza que os preços do hidrogênio acabarão por determinar se o setor adotará o combustível nas próximas décadas. Ele diz que os enormes volumes de hidrogênio necessários e o longo tempo que leva para construir a infraestrutura podem criar incertezas sobre a viabilidade do projeto.
“Estamos falando aqui de um período que vai de agora até 2055. É quase impossível fazer afirmações válidas e sólidas sobre esse período”, disse Schnaars à DW.
O risco para a empresa que administra a rede de dutos é enorme porque o governo se reservou o direito de abandonar o fundo de financiamento se o projeto se tornar inviável.
“No cenário em que a rede de hidrogênio não funcionar e acumularmos perdas até 2055, quem cobrirá essas perdas hipotéticas?”, perguntou o economista Südekum, observando que os investidores privados devem cobrir 25% do risco, de acordo com a regulamentação.
Modelo para financiar infraestrutura?
Enquanto isso, Habeck está planejando usar o novo mecanismo de financiamento para modernizar a defasada infraestrutura alemã.
Recentemente, o ministro disse ao semanário alemão Die Zeit que a rede elétrica do país, que é inadequada para a transição da Alemanha para a energia renovável e requer 300 bilhões de euros em investimentos nas próximas décadas, poderia ser financiada de forma semelhante.
Jens Südekum pode imaginar vários usos para esse método de financiamento. “Você poderia usá-lo em grande escala para habitação. O Estado poderia emprestar dinheiro para a construção de casas e, mais tarde, recuperar as perdas com o aluguel que receberá.”
Mas o político Michael Kruse, do liberal FDP, partido que integra a coalizão de governo alemã e que defende firmemente o respeito ao freio da dívida, adverte Habeck contra o uso excessivo desses veículos de financiamento.
“Se tivermos a impressão de que esse mecanismo serve de modelo para que nossos parceiros de coalizão contornem o freio da dívida em outras áreas, então combateremos essas tentativas”, avisa (DW, 1/5/24)