Principal divergência se refere ao aumento gradual da mistura de biodiesel no diesel na proporção de 1% ao ano até chegar a 20% em 2030; hoje mistura equivale a 14%.
A discussão sobre o aumento da mistura de biodiesel no óleo diesel comercializado no Brasil tem provocado um impasse entre o agronegócio e o setor de energia, do qual faz parte a Petrobras. Essa medida foi incluída em um projeto de lei que pode ser votado nos próximos dias na Câmara dos Deputados, batizado de “Combustível do Futuro”. A proposta faz parte da chamada “agenda verde” abraçada pelo Legislativo com o objetivo de tornar o País mais sustentável do ponto de vista ambiental e ampliar as fontes renováveis de energia.
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Relatado na Câmara pelo deputado Arnaldo Jardim (Cidadania-SP), vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) na Casa, o projeto prevê uma série de iniciativas para fazer com que o Brasil reduza a emissão de carbono e, dessa forma, cumpra metas internacionais, como as que estão previstas no Acordo de Paris. Para isso, a futura lei cria os programas de combustível sustentável de aviação, diesel verde e biometano, além do marco legal de captura e estocagem geológica de dióxido de carbono.
O ponto mais divergente da proposta é o aumento gradual da mistura de biodiesel no óleo diesel, que chegaria a 20% em 2030, com adição de um ponto porcentual ao ano, conforme o parecer protocolado por Jardim na Câmara. Hoje, esse porcentual está em 14%.
O objetivo é tornar o uso de combustível cada vez menos poluente, mas o setor energético afirma que seria necessária a previsão de mais testes técnicos para evitar que a mudança danifique motores de veículos. Uma ala do setor, ligada à Petrobras, rejeita também a possibilidade de perda de mercado do diesel, do qual a estatal é líder na produção nacional.
A escala gradual é uma das principais e mais antigas demandas do setor do biodiesel, desde os produtores de soja, processadores até fabricantes do biocombustível. Industriais alegam que um cronograma de mistura previsto em lei confere previsibilidade para os investimentos em ampliação da capacidade fabril. A medida é vista como necessária após a mistura ter sido reduzida frequentemente durante o governo Bolsonaro e a indústria registrar ociosidade de quase 50%.
Um representante do setor que prefere não se identificar afirma que o segmento não pode ficar à mercê da vontade política de cada governo. Segundo ele, é necessário que seja incluído em uma política real e de Estado a descarbonização da matriz de transportes. Para o executivo, é contraditório o Brasil liderar o debate mundial de redução de emissões de gases ligados ao efeito estufa, ter protagonismo na COP e não emplacar um projeto de energia verde.
A proposta tem amplo apoio da Frente Parlamentar Mista do Biodiesel (FPBio), que tem nas “externalidades positivas” do biodiesel o principal argumento de defesa. São elas: a inclusão da agricultura familiar na cadeia do biodiesel, o atual patamar do preço menor do biodiesel que o diesel importado e o fato de ser um combustível “mais verde”. No âmbito do Executivo, o ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, também já disse ser favorável ao projeto.
O relatório de Jardim foi bem recebido também pela FPA. “O relatório é super abrangente e muito bem fundamentado. Um projeto que trata de hidrogênio verde, de carros movidos a energia elétrica, mas também de matrizes que temos no Brasil e são extremamente importantes, como o biodiesel, que é produto da agropecuária brasileira e parcela importante do esmagamento de soja, e o etanol de cana-de-açúcar. Apoiamos 100% o projeto”, disse o presidente da FPA, deputado federal, Pedro Lupion (PP-PR), em entrevista recente. “Faz parte da pauta verde que apoiamos e estamos envolvidos”, acrescentou.
Na avaliação dele, Jardim, além de capacidade técnica, consegue dialogar com setores de energia e combustíveis.
Apesar dos impasses e das negociações para ajustes no texto, pedidos pelo Executivo, Jardim mantém o otimismo quanto à votação do projeto, que tramita em regime de urgência, ainda nesta semana. “Estamos trabalhando para isso com um conjunto de conversas com o governo e com as bancadas, buscando construir o máximo possível de consenso”, disse em entrevista ao Estadão/Broadcast.
Disputa pela relatoria
Diante da possibilidade de votação rápida do projeto na Câmara, o presidente da Frente Parlamentar de Energia, senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), iniciou uma articulação para receber a relatoria do texto no Senado. O agro reagiu e passou a trabalhar para que o relator seja outro: o senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO). Isso porque a frente liderada por Vital do Rêgo foi criada no Congresso por Jean Paul Prates, atual presidente da Petrobras.
Integrantes do setor de biodiesel avaliam que a estatal resiste ao aumento da mistura no óleo diesel. As ressalvas das fontes se devem ao fato de a pauta do biodiesel ainda não ser bem recebida pela Petrobras e seus dirigentes e pelas companhias transportadoras, que têm relação próxima com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Segundo fontes, os opositores ao etanol e pró veículos elétricos também têm mais espaço no Senado.
O relatório de Arnaldo Jardim também define que, a partir de 2031, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), ligado ao Ministério de Minas e Energia, ficaria autorizado a elevar o porcentual obrigatório de biodiesel na venda de óleo diesel para até 25% se constatada a viabilidade técnica. O porcentual já vinha sendo sinalizado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.
No entanto, as distribuidoras de combustível afirmam que, caso a mudança ocorra sem a devida testagem e resulte em danos nos motores, poderia haver perda de eficiência energética dos veículos usados para transporte de mercadorias, além de custos excessivos com reposição de peças e manutenção. Também dizem que esse cenário pode aumentar o preço do combustível para o consumidor final.
Arnaldo Jardim rebate as críticas. “Fizemos uma acurada pesquisa com relação a isso (danos em motores). Há casos isolados. Não há nenhuma evidência sistêmica”, afirmou ele. De acordo com o deputado do Cidadania, a Agência Nacional do Petróleo (ANP) endureceu nos últimos anos as regras de qualidade para o biodiesel.
“Vamos aguardar o direcionamento que se dará na Câmara. Precisamos saber quais serão os fundamentos dos setores para termos um posicionamento”, disse Vital do Rêgo, ao ser questionado pela reportagem sobre o assunto.
Em meio ao imbróglio, a União Brasileira do Biodiesel e do Bioquerosene (Ubrabio) afirmou, em nota, que a ampliação da produção de biodiesel no País reduzirá a dependência por diesel importado, mas sem concorrência com a produção nacional do combustível fóssil. “Assim, não há competição do setor de biodiesel com a Petrobras no mercado doméstico. A própria estatal, por meio da subsidiária Petrobras Biocombustível – Pbio, é uma grande produtora de biodiesel.” Outras 26 entidades do agronegócio e ligados ao biodiesel também se manifestaram com “apoio integral” ao parecer de Jardim.
Resistência do MME
Autor da proposta que gera o impasse entre agro e o setor de energia, o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), que preside a Frente Parlamentar Mista do Biodiesel (FPBio), disse na semana passada que o governo não quer perder “poder de mando” com a elevação gradual da porcentagem de biodiesel no óleo diesel. O estabelecimento de uma escala com cronograma para aumento da mistura era uma demanda antiga do setor.
O Palácio do Planalto prefere manter as decisões no âmbito do CNPE – órgão de assessoramento do presidente da República para políticas energéticas. O colegiado, presidido pelo ministro de Minas e Energia e formado por outros 15 ministérios, é convocado e pautado pelo Executivo. A maior resistência à determinação da escala em lei parte do MME.
O setor de energia vê com preocupação o que é considerado uma perda de poder do CNPE para eventuais reduções do porcentual da mistura de biodiesel. O relatório autoriza o Conselho a diminuir esse porcentual em até dois pontos “por motivo justificado de interesse público”, como, por exemplo, eventual impacto inflacionário, mas atualmente é permitida a redução em até seis pontos.
“O governo em geral não quer perder poder de mando, autonomia, poder político. Se (a determinação da mistura) for via CNPE, o governo tem condição de mudar a escala conforme condições econômicas. Engessando em lei, não”, disse Moreira, que também é ex-presidente e atual coordenador de política agrícola da FPA. Ele defendeu que a margem de dois pontos porcentuais para o conselho elevar ou reduzir a mistura de biodiesel no óleo diesel, prevista no projeto, é suficiente. “Não pode ser do livre arbítrio do governante (a decisão)”, afirmou.
O Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) também se posicionou. “Devem ser preservados os poderes do CNPE para decisões sobre o porcentual das misturas, pois este é o colegiado competente, com visão holística do mercado, para definir a política energética. E tal flexibilidade é necessária para a segurança do abastecimento nacional”, diz nota do IBP.
A indústria do biodiesel está disposta a negociar com o governo ajustes no projeto de lei do “combustível do futuro”, como mostrou o Broadcast Agro. O governo pediu que a graduação da mistura continue no âmbito do CNPE.
Procurada, a Petrobras não havia respondido até a publicação desta reportagem (Estadão, 7/3/24)