Embarcação francesa é capaz de fazer eletrólise da água, além de produzir energia solar e hidráulica.
Nos fundos de um hotel de Fortaleza, dezenas de turistas caminham em uma pista de cooper ou nadam na piscina sem notar os cinco barcos atracados no cais ao lado. Eles nem imaginam que uma dessas embarcações vale 6 milhões de euros (R$ 32 milhões) e é homenageada pela Presidência francesa. Trata-se do Energy Observer, o primeiro navio movido a hidrogênio verde do mundo.
A embarcação chegou à capital cearense na quarta-feira (15) e ficará na cidade até a próxima semana.
O Energy Observer começou a ser desenvolvido em 2013 pelo marinheiro Victorien Erussard, a partir da compra de um catamarã que pertencia ao velejador canadense Mike Birch –primeiro campeão da tradicional Rota do Rum, corrida de veleiros que liga a França continental a Guadalupe, no Caribe. O barco também já passou pelas mãos do campeão neozelandês Peter Blake, assassinado em Macapá no início dos anos 2000.
Desde então, o projeto recebeu milhões de euros de investimentos, e do catamarã original só restaram cacos. Hoje, a embarcação a velas produz energia solar, hidráulica e de hidrogênio.
A intenção do Energy Observer é testar as energias renováveis ao limite. O navio se move por meio de duas velas de 31,5 metros e por energia solar, captada pelos 202 m² de painéis fotovoltaicos. A embarcação também armazena até 63 quilos de hidrogênio, que são convertidos em eletricidade em momentos de condições climáticas desfavoráveis. Esse armazenamento equivale ao consumo de energia de uma família de quatro pessoas em um mês e dez dias.
A família do Energy Observer é quase desse tamanho. São dez cientistas, engenheiros e marinheiros, com 27 a 40 anos, que se revezam a cada dois meses em grupos de cinco. No barco, eles dormem em cápsulas que causariam pavor a claustrofóbicos.
“Somos como uma família, vivemos juntos e passamos inclusive momentos difíceis juntos”, diz Beatrice Cordiano, especialista em desenvolvimento sustentável e energia à Folha. Na quinta (16), jornalistas puderam conhecer o barco em evento organizado pela empresa francesa de energias renováveis Qair e pela Toyota. Beatrice diz gostar da aventura.
O navio iniciou sua expedição pelo mundo em 2017, em busca de soluções para a transição energética. Segundo a Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês), o setor marítimo emite cerca de 1 bilhão de toneladas de gases-estufa por ano, o que representa cerca de 3% das emissões globais.
Não à toa, Erussard busca agora fundos para criar um navio de carga movido a hidrogênio. “O frete marítimo é a base da nossa economia, e importação e exportação sempre existirão, então temos que buscar soluções de descarbonização para isso; só existem 500 barcos no mundo movidos a energias renováveis”, afirma.
No Brasil, antes de atracar em Fortaleza, a tripulação do Energy Observer visitou a produção de etanol em algumas cidades de São Paulo e se encontrou com pesquisadores da Raízen e da São Manoel, empresas desse mercado.
Veículos movidos ao combustível, segundo alas do setor automobilístico, são mais sustentáveis do que os carros elétricos, mas alguns especialistas não concordam.
No Linkedin, ao ser questionada por um usuário, a equipe do Energy Observer disse que “o Brasil é o segundo maior produtor mundial de biocombustíveis, e vir aqui sem falar sobre isso estaria em contradição com nossos objetivos”,
Questionada pela Folha, Beatrice afirmou que “por conta de todas as regulamentações do mercado, é difícil que o etanol brasileiro seja produzido de forma não sustentável”. “Existem acusações de que esse etanol cause desmatamento na Amazônia, mas isso não é verdade, já que a maioria é produzida perto de São Paulo. Então veículos movidos a etanol podem sim ser mais sustentáveis do que os veículos elétricos”, acrescentou.
No Ceará, os cientistas irão ao complexo eólico e solar Serrote, na cidade de Trairi, a 130 quilômetros de Fortaleza. O local é operado pela Qair, que tem sede na capital cearense. Todos os encontros da expedição são publicados no portal do Energy Observer por meio de textos e vídeos.
O barco já visitou mais de 40 países de todos os continentes e na próxima semana embarcará para a Guiana Francesa e Estados Unidos. Antes de chegar ao Brasil, ele estava na África do Sul e na Namíbia. A ideia do projeto é que o barco volte à França no ano que vem para participar das Olimpíadas de Paris –a presença nos jogos, porém, depende de autorização do comitê olímpico, o que tem sido difícil conseguir.
O hidrogênio é altamente reativo e inflamável com o oxigênio, o que pode causar grandes explosões, se não bem administrado.
“Hoje, já estamos na nossa segunda geração de célula de combustível e agora estamos em busca da terceira para o navio cargueiro; é importante salientar que o nosso navio laboratório abriga toda a produção de energia e compressão do hidrogênio, mas não recomendo que esse modelo seja aplicado em outras operações. O ideal é que a produção seja feita na terra”, diz Erussard.
No Energy Observer, os cilindros de hidrogênio ficam na parte externa do barco, o que diminui as chances de explosão (Folha, 18/11/23)