Por Fabiano Lana
Demarcação de terras indígenas, descriminalização das drogas, aborto: população brasileira não abraça decisões do STF, ao contrário.
Enquanto se discute sobre quem será o novo ministro do Supremo, se mulher, negra, ou leal ao presidente, é possível ler manchetes ou comentários sobre o outro poder, o Legislativo, em termos como “O Congresso mais reacionário de todos os tempos”, ou “os deputados conservadores votam mais um retrocesso”.
Do parlamento brasileiro é comum receber informações desairosas como “pressão do Centrão em busca de cargos”, “emenda Pix”, entre outras pouco edificantes. Não é à toa que a popularidade “boa e ótima” de nossos representantes não chegue aos 20%, mesmo que os parlamentares tenham se empenhado e mesmo conseguido aprovar reformas constitucionais imprescindíveis para o País.
Contra os deputados também pesa o fato de poucos eleitores se lembrarem em quem realmente votaram nas últimas eleições, segundo as últimas sondagens, mais de 60% – em razão até mesmo da concorrência de tantos pleitos simultâneos como de governador ou presidente da República, além das particularidades das leis eleitorais. No parlamento, sede do poder menos opaco, é também comum assistir a colegas agredindo os próprios colegas que pensam de maneira diferente. Nada disso ajuda na construção de imagem.
Nessa espécie de vácuo de aderência popular que o Supremo tem decidido questões que, em tese, para alguns críticos, são de responsabilidade exclusiva do Congresso. São três dentre os assuntos palpitantes do momento: a descriminalização do consumo de drogas, a liberação do aborto até um período determinado de gestação, e o marco temporal para territórios indígenas.
No caso do marco temporal, o Congresso já deu sua posição: 283 a 155 votos na Câmara pela medida que “limita a demarcação de terras e fragiliza direitos dos indígenas”, segundo a manchete dos jornais – medida corroborada nesta quarta-feira no Senado.
Com relação às drogas, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, propôs uma emenda constitucional que prevê a criminalização do porte de qualquer quantidade. Finalmente, com relação ao aborto, 40 senadores já assinaram um pedido de plebiscito para que a população se decida sobre o tema e não o Judiciário.
E como a sociedade se posiciona sobre essas questões? Há pesquisas recentes sobre o tema. Os brasileiros contra a descriminalização das drogas chegam a 66%, mais ou menos o mesmo índice que dos que são contra a legalização do aborto. Segundo os números, o Supremo tem se posicionado não só contra o Congresso, mas contra a maioria da população brasileira que escolheu seus representantes no Legislativo.
Do outro lado da praça do Três Poderes, o processo de decisões do Judiciário não é assim tão simples – talvez ininteligível para a absoluta maioria leiga. Tanto que, ao defender a descriminalização do aborto, a ministra Rosa Weber invocou preponderantemente princípios e não artigos específicos da lei. “A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal”, afirmou.
O movimento da justiça abarca, em todos os casos polêmicos citados, princípios iluministas, racionais e justificáveis. Por exemplo, no caso da descriminalização das drogas leves há uma série de argumentos possíveis de serem debatidos. Legalizar pode significar redução de criminalidade, transformar um problema penal em uma questão de saúde e ainda aumentar a arrecadação. Parlamentares, entretanto, não parecem pensar da mesma maneira, assim como seus eleitores. Argumentos correlatos valem para os outros temas.
A adversidade, talvez, é que a população brasileira não seja tão “iluminista” assim para abraçar as decisões do STF, ao contrário. Da perspectiva dos valores estão mais próximos daquele deputado de seu município do que de um prócer do Judiciário, que age de maneira contramajoritária.
Além disso, termos invocados nas decisões da corte como “autodeterminação”, “dignidade” e tantos outros utilizados costumam ser controversos em qualquer nível (nenhum filósofo se entende com outro quando o termo liberdade está em jogo, por exemplo).
O que o Supremo pretende é aprimorar o Brasil do ponto de vista dos princípios de seus ministros. O dramático é que não contam ainda com o apoio pleno dos principais interessados e atingidos: os brasileiros (Estadão, 29/9/23)