Alta acima de 1,5°C traz mais riscos; primeira avaliação do Acordo de Paris mostra que países precisam ampliar ações.
A mais abrangente avaliação já feita sobre o andamento do combate à crise climática aponta que, apesar de avanços ao redor do mundo desde a assinatura do Acordo de Paris, em 2015, muito mais é necessário. O planeta não caminha para limitar o aquecimento ao preferível 1,5°C ou a 2°C.
Levando em conta os anúncios na última conferência climática, a indicação é que a humanidade está rumo a um aumento de 2,4°C a 2,6°C na temperatura média global em relação aos níveis anteriores à Revolução Industrial.
A UNFCCC (sigla em inglês para Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) publicou, nesta sexta-feira (8), véspera da cúpula do G20, reunião dos líderes das 20 maiores economias do mundo, o primeiro Global Stocktake, um inventário global das ações contra a crise climática.
Segundo a análise, se os compromissos de longo prazo de neutralidade climática apresentados na COP27, a conferência da ONU (Organização das Nações Unidas) sobre mudanças climáticas que ocorreu ano passado, no Egito, forem totalmente implementados, o mundo tem a possibilidade de limitar o aquecimento entre 1,7°C e 2,1°C.
O documento aponta que a janela para aumentar as metas dos países e implementar os compromissos atuais para limitar o aquecimento global a 1,5°C está se estreitando rapidamente.
“A ambição de mitigação das NDCs não é coletivamente suficiente para alcançar a meta de temperatura do Acordo de Paris”, diz o relatório. NDC é a abreviação para “nationally determined contribution”, ou contribuição nacionalmente determinada. Em resumo, são as metas de redução de emissões que os próprios países determinaram para si.
A avaliação destaca que, para alcançar uma redução de emissões de gases-estufa de 43% até 2030, 60% até 2035 (em comparação a 2019) para finalmente chegar ao chamado “net zero” global em 2050, “muito mais ambição em ação e suporte para implementação de medidas domésticas [internas, dos países] é necessária”.
“Eu insto os governos a estudarem cuidadosamente as descobertas do relatório e, em última instância, entenderem o que isso significa para eles e a ação ambiciosa que devem tomar em seguida. O mesmo vale para as empresas, comunidades e outros atores-chave”, disse, nesta sexta, Simon Stiell, secretário-executivo da UNFCCC.
A partir da análise dos atuais compromissos climáticos dos países —as NDCs—, o documento aponta que, para o planeta ficar alinhado com a meta de limitar o aquecimento a até 1,5°C, existe uma lacuna de emissões. Ainda precisam ser cortadas de 20,3 gigatoneladas a 23,9 gigatoneladas de CO2 equivalente (unidade usada para somar os diferentes gases que causam o efeito estufa).
Quando falamos de aquecimento de 1,5°C até 2°C, a base de comparação é a temperatura do período pré-industrial, de 1850 a 1900. O documento aponta que o planeta já aqueceu 1,1°C, com inquestionável participação humana nesse processo que leva a eventos climáticos cada vez mais extremos e frequentes.
A avaliação aponta a necessidade de escalar o uso de energia renovável e eliminar todos os combustíveis fósseis. O texto trata esses pontos como indispensáveis.
Também é citada a necessidade de parar o desmatamento e a degradação de florestas, locais que são, potencialmente, sumidouros de carbono.
“A polida prosa das Nações Unidas encobre o que é um verdadeiro relatório condenatório para os esforços globais em relação ao clima. Emissões de carbono? Ainda em ascensão. Compromissos financeiros dos países ricos? Inadimplentes. Apoio à adaptação? Muito atrasado”, diz Ani Dasgupta, presidente da organização WRI (World Resources Institute), em nota. “Este relatório é um alerta para a injustiça da crise climática e uma oportunidade crucial para corrigir o rumo.”
Para o físico da USP e membro do IPCC (painel científico do clima da ONU) Paulo Artaxo, o 1,5°C ou os 2°C de aumento de temperatura já não são uma realidade factível.
“Só existe na cabeça de diplomata”, diz o pesquisador. “É muito importante que a imprensa e a ciência comecem a alertar a população de, afinal, para onde é que nós estamos indo de verdade”, completa ele, que aponta que, com o nível atual de emissões, chegaremos aos 3°C.
ADAPTAÇÃO AINDA É FRAGMENTADA
Além de tratar da redução dos gases-estufa, a avaliação também olha para os mecanismos de adaptação em curso —ou seja, como os países estão se preparando para os efeitos inevitáveis do aumento de temperatura já “contratado” pelas emissões atuais.
A maior parte dos esforços de adaptação são fragmentados, específicos para alguns setores e distribuídos de forma desigual nas regiões do planeta, concluem os autores. O relatório ressalta a necessidade de acelerar as ações que reduzam a vulnerabilidade da população.
“Um ponto de partida fundamental para ação aprimorada de adaptação é a disseminação de informações climáticas por meio de serviços climáticos para atender às necessidades e prioridades locais”, exemplifica o documento.
As verbas destinadas à adaptação passaram de 20%, em 2017-2018, para 28%, no biênio seguinte, do total de recursos alocados para questões de clima.
A avaliação aponta ainda a necessidade de escalar rapidamente, a partir de “fontes expandidas e inovadoras”, o apoio a ações de adaptação e ao financiamento para evitar, minimizar e lidar com perdas e danos decorrentes de eventos climáticos. O documento destaca que os fluxos financeiros precisam ser consistentes.
FINANCIAMENTO CLIMÁTICO
“É essencial desbloquear e realocar trilhões de dólares”, aponta a avaliação, que enfatiza que recursos significativos ainda subsidiam projetos de altas emissões de carbono ou de infraestrutura sem a resiliência necessária a um planeta mais quente.
O financiamento para limitar o aquecimento global a 1,5°C ou 2°C chegou, em 2019-2020, a somente de 31% a 32% do investimento anual necessário. Em contraste, no mesmo período, quase US$ 900 bilhões foram colocados, anualmente, em média, em combustíveis fósseis, e outros US$ 450 bilhões os subsidiaram.
É ressaltado ainda que o financiamento público internacional é estratégico para ajudar os países em desenvolvimento nesse processo. Somente dinheiro público, porém, não é suficiente para suprir a lacuna.
O QUE É O GLOBAL STOCKTAKE
O Global Stocktake está previsto no artigo 14 do Acordo de Paris. A avaliação deve ser feita a cada cinco anos. A ideia é que ela seja usada para ver o quanto o combate à crise climática andou e, assim, ajude na evolução dos compromissos.
O texto final deste primeiro relatório será debatido com os países na próxima conferência climática, a COP28, no fim deste ano em Dubai, nos Emirados Árabes.
Enquanto o documento lançado nesta sexta se apoia nas evidências científicas, na cúpula, a discussão entrará na esfera política. “A estrutura e o conteúdo do pacote político final permanecem, em grande medida, indefinidos”, diz Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa, que aponta o tom forte de “puxada de orelha” do relatório.
O Global Stocktake pode, diz Unterstell, colocar pressão sobre o próximo ciclo de revisão das NDCs. No caso brasileiro, a atual meta ainda possui a “pedalada” climática instituída sob o governo Bolsonaro (PL), que fez o corte de emissões proposto pelo país diminuir, em vez de aumentar, em sua última versão.
Em junho, o presidente Lula (PT) reafirmou o compromisso de fazer as “devidas correções na contribuição brasileira ao Acordo de Paris” (Folha, 10/9/23)