Por Henrique Sampaio
Série Tecnologia em Transformação, que integra os especiais temáticos de 150 anos do Estadão, ouve especialistas para mapear a revolução que ainda vem por aí – e explicar por que você não pode ficar fora dela
A inteligência artificial (IA) está infiltrada nas engrenagens invisíveis que movem decisões públicas e privadas no Brasil — do processamento de exames médicos ao combate a fraudes bancárias. E isso é só o começo. Com o boom dos últimos anos, a tecnologia promete reconfigurar profundamente os bastidores da vida cotidiana no País: diagnósticos médicos, decisões judiciais, concessões de crédito, operações de venda e locação de imóveis — diferentes processos serão permeados, em diferentes graus, por sistemas automatizados.

A promessa é de ganhos expressivos de produtividade, eficiência máxima, redução de custos, eliminação de gargalos e uma suposta “democratização” de bens e serviços — expressão recorrente no discurso dos entusiastas da IA. Mas, claro, há algumas “pedras” pelo caminho.
O Estadão ouviu especialistas na área para entender como a IA pode mudar o futuro do País. O resultado é esta reportagem especial em sete partes que ancora este Tecnologia em Transformação, o quarto capítulo da série de especiais temáticos que o jornal publicará até o fim de 2025, dentro das celebrações de seus 150 anos. Veja também: o “hub” de conteúdo, onde estão reunidas todas as notícias relacionadas ao aniversário do jornal, e os especiais República em transformação – em que discutimos saídas para a polarização política no País – e Economia em transformação, que aborda caminhos para o Brasil deixar de ser uma nação de renda média.
Um estudo da PwC aponta que a IA pode adicionar até 13 pontos porcentuais ao Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil até 2035, desde que sua implementação ocorra de forma responsável e com ampla confiança da sociedade e do mercado. Em um cenário global, o impacto potencial chega a 15 pontos, comparável à transformação econômica vivida na era da industrialização. No Brasil, só em 2025, estima-se que US$ 130 bilhões (cerca de R$ 715 bilhões) em receitas poderão mudar de mãos entre empresas como reflexo das mudanças tecnológicas.
Os desafios são proporcionais: extração de dados sensíveis, riscos de vieses socioeconômicos, ausência de regulação clara e dilemas ambientais são alguns deles.
A boa notícia é que o Brasil reúne vantagens competitivas, como uma base tecnológica sólida em setores como finanças, saúde, eleições e Justiça (veja mais abaixo), um ecossistema técnico qualificado, instituições de pesquisa consolidadas e uma população conectada. Mas ainda há um longo caminho a percorrer diante das escolhas que podem moldar seu futuro.
Para Patrícia Florissi, diretora técnica do Google Cloud, o País tem todos os elementos necessários para deixar de ser apenas consumidor de soluções estrangeiras e assumir um protagonismo global no desenvolvimento de IA. “A gente realmente tem a capacidade do capital humano e o acesso à tecnologia”, afirma. “Eu acho que o Brasil tem a possibilidade de se tornar a startup de IA generativa do futuro.”
Alavanca de transformação na saúde
Entre os setores mais impactados está a saúde. E, no caso brasileiro, a discussão vai além da automação de processos: ela se confunde com a própria missão de ampliar o acesso ao cuidado médico e combater desigualdades regionais.
Segundo a 28.ª edição da Global CEO Survey, que entrevistou mais de 4,7 mil líderes em mais de cem países, incluindo o Brasil, a IA tem gerado ganhos expressivos de eficiência no setor de saúde. Entre os CEOs brasileiros da área, 58% relataram aumento na produtividade dos funcionários com o uso de IA generativa, superando a média internacional de 52%. Além disso, 35% afirmaram já ter registrado crescimento nas receitas graças à adoção dessas tecnologias.
Na visão de Luiz Fernando Joaquim, sócio da Deloitte e especialistas em soluções de tecnologia para o setor de saúde, a IA terá um papel integrador, focado em eliminar a papelada, melhorando a organização de informações. A tecnologia será especialmente útil para antecipar diagnósticos e identificar padrões precoces, como possíveis casos de diabete ou câncer em estágios iniciais, além de reforçar práticas preventivas.
Esse raciocínio também guia o trabalho de Bruno Farias, cofundador da startup brasileira Neomed, que usa modelos do Google Cloud para acelerar o diagnóstico de doenças cardíacas. “Se a gente não começar a utilizar a IA para otimizar esses processos e direcionar o paciente certo para o atendimento certo, com critério, não é uma questão de alguém lucrar mais, é que o sistema vai colapsar. O modelo atual, como está, não se sustenta”, aponta.
Enquanto isso, no setor público, o Ministério da Saúde aposta na digitalização dos dados e na criação de um prontuário único nacional por meio do projeto Open Health. O objetivo é que esses dados circulem de forma segura entre diferentes níveis do Sistema Único de Saúde (SUS) e instituições privadas, permitindo que o histórico do paciente o acompanhe ao longo da vida. Isso também abre espaço para que a IA processe volumes maiores de dados clínicos, de forma mais rápida e padronizada, permitindo diagnósticos mais precisos e personalizados.
Por outro lado, a livre circulação de dados sensíveis de cidadãos também possibilita o uso indevido dessas informações para fins que prejudiquem os próprios pacientes, como discriminação em seguros, práticas abusivas de mercado ou exclusão de atendimentos com base em perfis de risco calculados por algoritmos.
Ao longo de quase um mês, o Estadão buscou entrevista com a Secretaria de Informação e Saúde Digital, responsável pela transformação digital do SUS. Embora a assessoria tenha indicado o interesse da pasta em responder à reportagem, não enviou as informações solicitadas nem concedeu entrevista até a conclusão deste texto.
‘Banco invisível’
A presença da IA na vida do brasileiro vai muito além da saúde. Silenciosamente, ela começa a transformar a forma como se obtém crédito, se decide uma causa na Justiça ou se busca um novo imóvel. Não é exagero dizer que, para boa parte da população, a IA vai interferir justamente nos pilares mais sensíveis da vida prática: dinheiro, moradia e Justiça.
No sistema financeiro, a transformação é visível e acelerada. “Hoje a IA está sendo muito aplicada para segurança, resiliência cibernética (capacidade de um sistema se proteger e se recuperar de ataques digitais) e análise de crédito. São áreas de maior prioridade para proteger o sistema financeiro e onde estão os maiores esforços dos bancos em tecnologia”, afirma Wagner Martin, vice-presidente da Veritran e mentor do Lift Lab, iniciativa do Banco Central.
Segundo Martin, o futuro passa pela combinação entre IA, Open Finance (compartilhamento autorizado de dados financeiros entre instituições) e Drex (a moeda digital brasileira), promovendo o que ele chama de “banco invisível”.
“As principais transformações estarão ligadas à potencialização do conceito de banco invisível, dos serviços não financeiros dentro da indústria e a oferta cada vez mais assertiva em tempo, forma e cliente.”
Na prática, de acordo com o especialista, o consumidor deve parar de interagir com produtos financeiros diretamente. Em vez de o cliente buscar um empréstimo ou financiamento ativamente, os sistemas passarão a fazer sugestões a ele com as melhores opções com base em seu histórico, renda, comportamento de consumo e metas futuras, como comprar um carro ou viajar. “A IA vai tornar a vida das pessoas mais simples”, acredita Martin.
IA sabe qual é a melhor casa para você
No mercado imobiliário, a automatização ganha contornos parecidos. Plataformas como a Kenlo já integram IA em todas as etapas do processo de compra, venda e locação, usando modelos do Google Cloud — é um setor que já tem grandes nomes como QuintoAndar e Loft. “A gente não cria soluções de IA para tentar cortar custos ou demitir corretores. Mas para potencializar o negócio, para fazer o empresário entender o que ele precisa para ser uma imobiliária melhor no mercado”, afirma Roberto Dariva, CEO da Kenlo.
Dariva reconhece que o setor enfrenta riscos como a reprodução de vieses socioeconômicos, algo que tenta mitigar com treinamento contínuo da IA pelos próprios corretores. “Se tiver o problema de viés, o próprio corretor pode entrar, dar sugestões e descartar os imóveis que achou que não faria sentido para aquele cliente, treinando novamente a IA.”
Justiça para todos
Já no campo jurídico, a promessa da IA é nivelar o acesso à informação e, com isso, reduzir desigualdades processuais. Segundo Marcelo Alcântara, diretor de produto do JusBrasil, a IA pode corrigir falhas comuns em peças processuais, acelerar a tramitação de causas e eliminar a vantagem antes restrita a certos profissionais. “Agora não importa se você é um advogado autônomo ou se você trabalha em um grande escritório de advocacia. A mesma informação, por mais complexa, está acessível a todo mundo.”
Ele acredita que a IA pode corrigir distorções do sistema que até então eram consideradas inevitáveis. “Pela primeira vez na história do Direito, independentemente do poder econômico, dos advogados, as partes vão conseguir apresentar argumentos jurídicos igualmente sólidos e bem fundamentados ao juiz”, diz. Segundo Alcântara, o nivelamento e o acesso a informações precisas podem ajudar a reduzir erros que levam a causas perdidas ou a atrasos processuais.
Em março, o JusBrasil lançou o Jus IA, um assistente jurídico alimentado com o acervo de mais de 1,2 bilhão de documentos públicos da empresa, estruturados e validados ao longo de 16 anos.
Direcionada a profissionais do Direito mas acessível a qualquer um, a ferramenta pode responder perguntas, criar documentos e analisar referências jurídicas. Por trás da tecnologia, estão múltiplos modelos de linguagem, combinando grandes modelos comerciais (como ChatGPT e Gemini) com um modelo próprio treinado com tecnologia nacional, em parceria com a startup paulista Maritaca AI.
O Supremo Tribunal Federal (STF) também já começou a adotar ferramentas baseadas em IA para agilizar a produção de documentos e a triagem de processos. Em dezembro de 2023, o tribunal lançou o MARIA, um módulo de apoio à redação automatizada criado em parceria com o JusBrasil.
A ferramenta é capaz de gerar minutas de ementas, elaborar relatórios em recursos extraordinários e fazer análises iniciais de petições. Segundo Alcântara, essa colaboração mostra como o Judiciário brasileiro tem se mostrado receptivo à tecnologia. “Há um trabalho realmente a quatro mãos para fazer a tecnologia funcionar melhor para o sistema”, diz. Ele destaca que, além de aumentar a produtividade, a IA pode ajudar a reduzir erros procedimentais e acelerar a tramitação de causas, com impactos diretos na prestação de Justiça.

Em 2024, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificou 147 sistemas de IA em uso ou em desenvolvimento no Judiciário brasileiro. Esses sistemas incluem desde classificadores automáticos de processos até ferramentas de apoio à redação de decisões e assistentes virtuais, com o objetivo de agilizar tarefas e reduzir a morosidade do setor. Embora o uso da IA generativa por magistrados e servidores ainda seja pouco frequente, o interesse é elevado, com ampla demanda por capacitação.
Desde setembro de 2024, a Advocacia-Geral da União (AGU) passou a usar IA generativa integrada ao seu sistema Super Sapiens para agilizar a gestão e a produção de documentos jurídicos e administrativos. A expectativa é de que o tempo economizado nessas tarefas rotineiras seja direcionado à análise jurídica e formulação de estratégias, otimizando o trabalho da instituição, que movimenta cerca de 16 milhões de processos por ano e, só em 2023, arrecadou em nome da União R$ 57,8 bilhões e evitou outros R$ 64,6 bilhões em despesas judiciais — os valores não são relacionados ao uso de IA em si, mas à atuação geral da AGU. São cifras que podem aumentar à medida que a tecnologia avança na instituição.
Aprendizado personalizado
Outras áreas estratégicas da sociedade brasileira podem ser transformadas pela inteligência artificial generativa, segundo Patrícia Florissi, do Google Cloud. Um dos setores mais promissores é a educação. Patrícia defende que cada estudante brasileiro tenha acesso a um tutor privado baseado em IA, capaz de oferecer um aprendizado personalizado.

“Que esse tutor entregasse um aprendizado personalizado para cada brasileiro, que ele entendesse quais são as deficiências do indivíduo e criasse um currículo que encontra o aluno onde ele está.” Para ela, a IA pode inverter a lógica atual, em que o aluno precisa se adaptar ao currículo e ao ritmo da escola. “Eu acho que o Brasil seria um país que poderia se beneficiar muito disso para diminuir o déficit do setor educacional.”
Outra frente destacada por Patrícia é o combate à fome. Ela relata sua atuação junto ao movimento Pacto Contra a Fome e aponta um problema central: “Uma das maiores dificuldades é conectar quem tem fome a quem tem algum alimento que possa combater essa fome e a outros agentes que podem transformar aquele alimento numa refeição”, diz. Ela defende que a IA generativa poderia articular essa rede de doadores, cozinhas solidárias e organizações de distribuição de forma mais eficiente e automatizada (Estadão, 8/6/25)